"JANGO"
por Laerte Moreira dos Santos
O filme documentário "Jango"
é de 1984 com produção e direção do cineasta Silvio Tendler.
Em apresentação deste documentário
feita pela redação do Jornal "Folha de São Paulo", por ocasião da
participação deste no Ciclo "1964:30 anos", lemos em artigo de 31 de
março de 1994: "Realizado na época da campanha pelas eleições diretas para
presidente, em 1984, "Jango" faz uma retrospectiva do governo João
Goulart e dos acontecimentos que precederam sua deposição pelo golpe de 31 de
março de 1964. Apesar do título, o filme escapa de um registro meramente
personalista em torno da figura de João Goulart, aproveitando o momento
político de sua realização para fazer um discurso sobre a volta da democracia.
Tendler não se limita, na montagem dos documentos, ao golpe em si. Utiliza-se
da personalidade de Jango como um pretexto para inserir uma colagem de imagens
históricas do regime militar. A repressão às passeatas após 68 e o período de
terror que marcaram o governo Médici são o ponto forte do filme. A brutalidade
da imagens até então não havia sido livremente explorada pelo cinema
brasileiro. Mesmo passados dez anos desde o fim do regime militar, as cenas do
documentário ainda mantêm seu impacto...."
A frase destacada por mim se tornará o
ponto de partida para a elaboração desta resenha.
A afirmação de que o registro da figura
do ex-presidente João Goulart é apenas um pretexto para uma abordagem do
contexto histórico do golpe de 64, é, a meu ver, passível de questionamentos.
Passa a idéia de que tal registro seria
no documentário algo secundário. O principal no documentário seria o contexto
do Golpe de 64.
Se é verdade que o documentário não
pretende um registro "meramente personalista da figura de João
Goulart", por outro lado, nas palavras do próprio Silvio Tendler
(Folhetim, nº 376, p. 8 – Jornal "Folha de São Paulo", sem data), o
objetivo era o de "mostrar a necessidade de um projeto político, econômico
e social que contemplasse o lado de justiça social". E para este cineasta
"este projeto estava no resgate da figura de João Goulart".
Ou seja, fica claro que a figura de
Jango no filme vai estar vinculada intrinsecamente à interpretação que o
cineasta pretende dar ao contexto histórico do golpe de 64 e, portanto, não é
mero pretexto nem algo secundário.
Em um primeiro momento poderíamos
concluir que Silvio Tendler estaria evidenciando com esta sua afirmação a carga
de subjetividade, de interpretação pessoal, presente em todo filme
documentário. Afinal a possibilidade da vinculação da figura de Jango com um
projeto, vamos chamar assim, social-democrata, é uma entre outras
possibilidades. Há outras visões sobre o governo João Goulart. Por exemplo o
intelectual Paulo Schilling tem a seguinte avaliação: "Foi o mais
eficiente agente das classes dominantes e do imperialismo na contenção do
avanço popular. De traição em traição chegou a entrega do poder para a
direita."
Sem ainda nos reportar ao filme, mas
iniciando um processo de crítica, questionamos, outrossim, a palavra
"resgate" no contexto desta afirmação.
Esta palavra passa a idéia de que
determinados fatos históricos comprovariam a vinculação da figura de Jango com
um projeto político social-democrata. Caberia a Silvio Tendler resgatá-los, ou
seja, trazer à tona a "verdade dos fatos" até para fazer justiça a
figura de Jango. Subjaz a idéia de que não se trata de interpretação mas de
objetividade dos fatos.
Agora, continuando a nossa resenha
tendo em conta o que nos é passado pelo documentário, constatamos que nosso
cineasta consegue fazer esta vinculação com competência. Revela um grande
domínio da técnica desta forma de fazer cinema e da linguagem cinematográfica.
Tenta nos convencer, e acredito que
consegue este convencimento com uma grande parte do público que assiste e assistiu
este documentário, tenta nos convencer que o que é projetado é realmente
expressão fidedigna dos fatos históricos acontecidos. Que a sua interpretação é
a própria realidade. E consegue isto não somente através da voz do locutor com
um discurso apoiado em fontes bibliográficas simpáticas ao governo Jango ou
depoimentos de cientistas sociais ou de pessoas participantes deste contexto
histórico. Usa também e com maestria todo a aparato cinematográfico. E este é
um elemento fundamental para nos seduzir.
E este momento da resenha, permito-me
uma pequena digressão a respeito desta sedução provocada pelo aparato
cinematográfico.
Sabemos, e não é de hoje, que "os
fatos não falam por si mesmos, é necessário interpretá-los", ou seja, o
que chamamos de real é carregado de subjetividade devido ao fato que a
realidade é sempre interpretada. Disto não escapa o documentário que mais do
que reproduzir a realidade, a constrói.
Mas o interessante é que, apesar de
sabemos disto, somos constantemente seduzidos pela linguagem e pelo aparato
cinematográfico que estão presentes também nos documentários.
Todo o contexto para a projeção de um
filme: a sala escura, a tela grande, o silêncio, recursos como a música que
tenta nos seduzir pela emoção, pelo sentimento, sem contar a própria forma como
o filme é montado, tudo isto colabora para diluir o grau de criticidade de
nosso olhar e nos conformarmos ao olhar do diretor do filme.
Se concordarmos totalmente com a
análise do caráter do cinema feito por Jean-Louis Baudry, na década de 70, pois
ela nos levaria a um beco sem saída, diríamos com ele que, apesar da ilusão que
temos de sobrevôo, de pairar com a nossa consciência crítica acima dos aparatos
técnicos e do contexto envolvente, na verdade somos
conduzidos por eles. Eles monitoram a
nossa fantasia.
Talvez por isto seja tão difícil a
distância crítica necessária.
Mas se há a dominação não acreditamos
que seja total (e aí a minha posição se diferencia da de Baudry). Concordo com
Ismail Xavier quando no texto "cinema: Revelação e Engano" (Do Livro
"O Olhar", vários autores, Cia de Letras, 1988, São Paulo) afirma:
"o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista". Se
observamos "com ele o mundo", devemos "colocá-lo também em foco,
recusando a condição de total identificação com o aparato".
Enxergar mais é estar atento ao visível
e também ao que, fora do campo, torna visível. (grifo meu).
Por mais que um diretor tente nos
conformar à sua visão, a passividade não é total. Há espaço para uma releitura.
Esta expressão "enxergar
mais" nos revela que o real é mais complexo. Se damos conta do real
através de uma relação dialética entre o sujeito do conhecimento e o objeto de
conhecimento, na prática acontece muitas vezes o reducionismo. Ou seja,
terminamos por amordaçar a realidade, aprisionando-a com as nossas
interpretações, com nossas categorias racionais, que sempre tem características
sistemáticas, articulações lógicas que aparentemente dão conta do real na sua
plenitude.
Talvez esta seja a herança negativa do
pensamento cartesiano que reduz o real à pura extensão. Para Descartes que
considerava como critério de verdade a "clareza e distinção" não
seria possível dar conta da verdade do mundo físico a não ser a partir da
categoria matemática "extensão", idéia clara e distinta. Ou seja o
real era empobrecido.
Se é verdade que não reduzimos
realidade à pura extensão, a perspectiva reducionista está muitas vezes
presentes no processo de desvendamento da realidade.
O preço disto é a eliminação de
determinados elementos que fazem parte do real e que poderiam dar um grau de
complexidade não suportada por nossa moldura intelectual reducionista.
Mas se não é possível nos libertarmos
totalmente desta postura reducionista, por outro lado é possível atenuar o
aprisionamento do real, consequência do nosso reducionismo interpretativo, uma
verdadeira camisa de força. É claro que não queremos significar que o real se
manifesta por si mesmo, mas que é possível abrir espaço para outras
interpretações possíveis que nunca, é claro, o esgotarão.
Por isso, voltando à questão do
documentário, ouso erigir um critério para medir a qualidade de um documentário
do ponto de vista da verdade: "ele se valoriza quando mostra e faz pensar,
mais do que quando define ou explica". (Apostila "Documentários:
Histórica, crítica e processo de Produção" para Curso de "Cinema e
Documentário" – de 28/08 a 13/11 – pág. 13)
Se este critério é válido para o
produtor, para o telespectador crítico, concordando ainda com Ismail Xavier, o
reducionismo vai ser atenuado, vamos "enxergar mais" se estivermos
atentos ao que "fora do campo torna visível". Ou seja (se interpreto
bem a afirmação de Ismail), é naquilo que não é dito, naquilo que fica oculto,
é que eu vou poder "enxergar mais".
---------------------------------
Estes critérios vão nos inspirar a
partir de agora na continuidade de nossa resenha agora voltada para a análise
do filme em si.
Como já afirmamos anteriormente desde o
início do documentário Tendler consegue envolver o telespectador induzindo-o a
se conformar ao seu olhar, ou seja, a ter uma imagem positiva da figura de
Jango. E não apenas de João Goulart. As referência a JK e Getúlio Vargas,
presidentes que o precederam, são altamente elogiosas. Tiveram um projeto
altamente positivo com preocupação social que é continuado por Jango. Jango é o
herdeiro de um projeto político com preocupação social iniciado por Getúlio
Vargas.
A competência de Silvio Tendler no uso
do aparato cinematográfica é digna de elogios. Logo no início do filme a música
de Milton Nascimento e Wagner Tiso, acompanhada por fotos de João Goulart,
sempre sorridente, prepara o nosso espírito para a adesão, mexe com as nossas
emoções, com os nossos sentimentos. Esta música triste, suave, com a formidável
voz de Milton, nos enleva, nos toca. Prepara-nos para o que virá, ou seja, uma
adesão completa à perspectiva do diretor que é de passar uma imagem positiva do
governo João Goulart.
Este perfil positivo é destacado em
outras partes do filme principalmente nas cenas já bem próximas do golpe e
posteriores. Nestas cenas não somente a música mas a montagem, como por
exemplo, a alternância de cenas do "Encouraçado Potemkim" com cenas
da revolta dos Marujos ou fotos de João Goulart durante o chamado "Comício
da Central" dão um ar de dramaticidade que nos envolvem definitivamente.
A imagem de Jango como grande estadista
já é destacada mesmo antes de assumir a presidência na sua viagem a URSS. Mas
mais do que isto estas cenas da viagem querem nos fazer acreditar que Jango, em
nome do interesse maior da nação, já se colocava contra os interesses
imperialistas das nações capitalistas ocidentais (principalmente os Estados
Unidos), desenvolvendo uma política externa independente.
Tendler é competente para nos mostrar
um presidente sempre equilibrado, disposto ao sacrifício pessoal ao invés do
sacrifício da nação, sempre colocando o interesse da nação acima de tudo, com
uma ação sempre marcada pela preocupação com a justiça social, com o bem estar
dos mais pobres, que se expressou, principalmente, pelas tentativas de
implementar as reformas de base.
Mesmo quando pune determinadas pessoas
como lideranças da revolta dos marujos ou quando decreta o Estado de Sítio,
sempre é em nome da nação, tem o fim de salvaguardar um projeto político que
propõe um capitalismo menos selvagem.
Os depoimentos tem um papel chave neste
documentário. Aliás em todos documentários. Dão a chancela necessária para o
grau de verdade dos fatos apresentados.
Vão comprovar não somente que Jango
tinha uma preocupação com a justiça social mas tinha apoio popular.
Ao lado de depoimentos de participantes
do golpe que criticam o governo João Goulart, há também os depoimentos daqueles
do campo progressista e de esquerda que reforçam a imagem positiva do governo
Jango mesmo que não se refiram diretamente a ele.
É difícil não concordar os depoimentos
favoráveis a Jango mesmo contrapondo-os aos depoimentos desfavoráveis como o do
Gen. Muricy, participante e apoiador do Golpe de 64. Estes últimos visam,
justamente, reforçar a visão positiva na medida em que se constituem como
contraponto negativo.
Mas, apesar deste envolvimento, é
possível como em todo documentário ter uma postura crítica, "enxergar
mais" através do que não é dito.
À primeira vista temos a impressão de
que Silvio Tendler "mostra e faz pensar" ao entrevistar pessoas a
favor e contra o governo Jango. Porém os que se colocaram contra este governo
estão ligados direta ou indiretamente ao projeto da ditadura militar que é
claramente caracterizada durante o filme como antidemocrático, violento,
vinculado aos interesses da classe dominante, do imperialismo norte americano,
impeditivo de uma participação política do povo. De outro lado, depoimentos de
pessoas que, mesmo quando não fazem nenhuma referência elogiosa a Jango,
reforçam a imagem positiva passada por Tendler.
Damos exemplos: Francisco Julião,
ex-dirigente das ligas camponesa, afirma em seu depoimento que Jango defendia
as reformas de base como a reforma Agrária, Reforma Urbana e Reforma
tributária. O seu governo deu espaço para a participação popular. Aldo Arantes,
ex-dirigente estudantil, e também Gregório Bezerra além de destacarem de forma
positiva as reformas de base do governo Jango, chamam atenção para o clima
democrático garantido por este governo que favorecia a organização popular.
Mas sabemos que no campo progressista e
de esquerda não havia e até hoje não há a unanimidade em relação ao governo
Jango. Já exemplificamos com a interpretação de Paulo Schilling.
Fica então claramente evidenciada a
parcialidade, o caráter ideológico deste documentário. Apresenta para nós uma
única interpretação como se ela se identificasse com a objetividade dos fatos.
Não são apresentados depoimentos de pessoas situadas no campo progressista e de
esquerda com uma visão crítica e diferenciada sobre o Governo João Goulart.
Aliás, me pareceu que há uma crítica a
um setor de esquerda que com o seu suposto radicalismo impediu a consumação da
democracia através de Jango (subjaz aí, talvez, a visão do PCB, que entendia a
democracia no Brasil, mesmo sendo burguesa, como uma etapa necessária para o
advento do Socialismo).
Por isto este documentário não nos
ajuda a entender os conflitos deste tempo na sua complexidade. Não estamos
diante do real que por sua própria natureza é polissêmico e complexo mas com a
construção de um real com um único significado e extremamente simplificado. O
reducionismo cartesiano está aqui presente.
As divergências não se manifestam nem
em relação a fatos e atos comprovadamente polêmicos como a decretação do Estado
de Sítio, Comício da Central, Plano Trienal. Se é verdade que Silvio Tendler
revela, por exemplo, a oposição da CGT (Central Geral de Trabalhadores) ao
Plano Trienal entendendo-o como prejudicial aos trabalhadores, a revela para
afirmar que foi uma posição equivocada que somente ajudou aqueles interessados
na desestabilização do Governo. Novamente a voz pausada do locutor traz a tona
a explicação verdadeira dos fatos.
Em todo caso continuamos sem nenhum
depoimento de pessoa do campo progressista e de esquerda com críticas a estes
atos e fatos. Quem avalia, por exemplo, o Plano Trienal é Celso Furtado,
ex-ministro de Planejamento de João Goulart e idealizador do plano. No caso da
Decretação de sítio, dá o sua versão um ex-lider do PTB na câmara (Bocayuva) (partido
de Jango). Na sua versão esta proposta do governo como outras propostas e atos
tinham o sentido de salvaguardar este projeto social-democrata. Segundo a sua
versão, não tinha nenhum elemento que atentasse contra os direitos
fundamentais. E se não foi aprovado pelo PTB (Partido de Janto) foi justamente
porque a direita propôs emendas que o desfigurariam inserindo itens que
atentariam contra direitos fundamentais e que acabariam por prejudicar os
trabalhadores. Então temos PTB e o próprio governo unidos na rejeição de uma
proposta deste mesmo governo em nome de valores democráticos. Para muitos do
que assistem este documentário esta atitude é uma das confirmações do apreço
que Jango tinha por estes valores. A democracia pesou mais que a segurança.
No caso do "Comício da
Central" o depoimento é de Raul Riff, ex-secretário de imprensa de Jango,
e sempre como reforço à imagem positiva de João Goulart. Chega até a afirmar
que Jango foi aconselhado a não realizar este comício mas resolveu assumi-lo.
Fica evidenciada, portanto, mais uma virtude de Jango: a coragem.
Por isso, concordamos com Jean-Claude
Bernardet e Alcides Freire Ramos quando afirmam em seu livro "Cinema e
História do Brasil" à pág. 45: "o filme Jango está informado pela
visão oferecida pelos agrupamentos de esquerda que mais apoio deram ao governo:
o PTB e o PCB. O filme faz com que a visão destes grupos apareça como a mais
válida sobre o tema (as opiniões contrárias ao governo oferecidas pelos
militares funcionam como reforço da visão do PTB, do PCB e do filme)."
E concluímos esta resenha afirmando que
o documentário Jango mostra mas "não faz pensar". Diferentemente de
outros documentários como o de Eduardo Coutinho que possibilita espaço para os
diversos sujeitos com suas visões diferenciadas, deixando explícito que o real
é sempre construído, o real é sempre fruto de interpretações dos sujeitos que
tentam desvendá-lo. Enfim, que o real é sempre construído dentro de limites e
possibilidades, é sempre muito humano, carrega as suas marcas
.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1.Ramos, Freire Alcides e Bernardet,
Jean Claude. Cinema e História do Brasil. São Paulo, Editora Contexto e Editora
da Universidade de São Paulo,1988.
2. Vários autores. O Olhar. (texto de
Ismail Xavier: "Cinema: Revelação e Engano"). Cia de Letras, São
Paulo, 1988.
3. Apostila do Curso "Cinema e
Documentários": "História, crítica e processo de Produção".
Mnemocine - Ensino e Pesquisa, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário