terça-feira, 5 de junho de 2012

Resenha : filme/documentário Jango.


"JANGO"

 por Laerte Moreira dos Santos


O filme documentário "Jango" é de 1984 com produção e direção do cineasta Silvio Tendler.

Em apresentação deste documentário feita pela redação do Jornal "Folha de São Paulo", por ocasião da participação deste no Ciclo "1964:30 anos", lemos em artigo de 31 de março de 1994: "Realizado na época da campanha pelas eleições diretas para presidente, em 1984, "Jango" faz uma retrospectiva do governo João Goulart e dos acontecimentos que precederam sua deposição pelo golpe de 31 de março de 1964. Apesar do título, o filme escapa de um registro meramente personalista em torno da figura de João Goulart, aproveitando o momento político de sua realização para fazer um discurso sobre a volta da democracia. Tendler não se limita, na montagem dos documentos, ao golpe em si. Utiliza-se da personalidade de Jango como um pretexto para inserir uma colagem de imagens históricas do regime militar. A repressão às passeatas após 68 e o período de terror que marcaram o governo Médici são o ponto forte do filme. A brutalidade da imagens até então não havia sido livremente explorada pelo cinema brasileiro. Mesmo passados dez anos desde o fim do regime militar, as cenas do documentário ainda mantêm seu impacto...."

A frase destacada por mim se tornará o ponto de partida para a elaboração desta resenha.
A afirmação de que o registro da figura do ex-presidente João Goulart é apenas um pretexto para uma abordagem do contexto histórico do golpe de 64, é, a meu ver, passível de questionamentos.
Passa a idéia de que tal registro seria no documentário algo secundário. O principal no documentário seria o contexto do Golpe de 64.

Se é verdade que o documentário não pretende um registro "meramente personalista da figura de João Goulart", por outro lado, nas palavras do próprio Silvio Tendler (Folhetim, nº 376, p. 8 – Jornal "Folha de São Paulo", sem data), o objetivo era o de "mostrar a necessidade de um projeto político, econômico e social que contemplasse o lado de justiça social". E para este cineasta "este projeto estava no resgate da figura de João Goulart".
Ou seja, fica claro que a figura de Jango no filme vai estar vinculada intrinsecamente à interpretação que o cineasta pretende dar ao contexto histórico do golpe de 64 e, portanto, não é mero pretexto nem algo secundário.
 Em um primeiro momento poderíamos concluir que Silvio Tendler estaria evidenciando com esta sua afirmação a carga de subjetividade, de interpretação pessoal, presente em todo filme documentário. Afinal a possibilidade da vinculação da figura de Jango com um projeto, vamos chamar assim, social-democrata, é uma entre outras possibilidades. Há outras visões sobre o governo João Goulart. Por exemplo o intelectual Paulo Schilling tem a seguinte avaliação: "Foi o mais eficiente agente das classes dominantes e do imperialismo na contenção do avanço popular. De traição em traição chegou a entrega do poder para a direita."

Sem ainda nos reportar ao filme, mas iniciando um processo de crítica, questionamos, outrossim, a palavra "resgate" no contexto desta afirmação.

Esta palavra passa a idéia de que determinados fatos históricos comprovariam a vinculação da figura de Jango com um projeto político social-democrata. Caberia a Silvio Tendler resgatá-los, ou seja, trazer à tona a "verdade dos fatos" até para fazer justiça a figura de Jango. Subjaz a idéia de que não se trata de interpretação mas de objetividade dos fatos.
 Agora, continuando a nossa resenha tendo em conta o que nos é passado pelo documentário, constatamos que nosso cineasta consegue fazer esta vinculação com competência. Revela um grande domínio da técnica desta forma de fazer cinema e da linguagem cinematográfica.
 Tenta nos convencer, e acredito que consegue este convencimento com uma grande parte do público que assiste e assistiu este documentário, tenta nos convencer que o que é projetado é realmente expressão fidedigna dos fatos históricos acontecidos. Que a sua interpretação é a própria realidade. E consegue isto não somente através da voz do locutor com um discurso apoiado em fontes bibliográficas simpáticas ao governo Jango ou depoimentos de cientistas sociais ou de pessoas participantes deste contexto histórico. Usa também e com maestria todo a aparato cinematográfico. E este é um elemento fundamental para nos seduzir.
 E este momento da resenha, permito-me uma pequena digressão a respeito desta sedução provocada pelo aparato cinematográfico.
 Sabemos, e não é de hoje, que "os fatos não falam por si mesmos, é necessário interpretá-los", ou seja, o que chamamos de real é carregado de subjetividade devido ao fato que a realidade é sempre interpretada. Disto não escapa o documentário que mais do que reproduzir a realidade, a constrói.
 Mas o interessante é que, apesar de sabemos disto, somos constantemente seduzidos pela linguagem e pelo aparato cinematográfico que estão presentes também nos documentários.
Todo o contexto para a projeção de um filme: a sala escura, a tela grande, o silêncio, recursos como a música que tenta nos seduzir pela emoção, pelo sentimento, sem contar a própria forma como o filme é montado, tudo isto colabora para diluir o grau de criticidade de nosso olhar e nos conformarmos ao olhar do diretor do filme.
 Se concordarmos totalmente com a análise do caráter do cinema feito por Jean-Louis Baudry, na década de 70, pois ela nos levaria a um beco sem saída, diríamos com ele que, apesar da ilusão que temos de sobrevôo, de pairar com a nossa consciência crítica acima dos aparatos técnicos e do contexto envolvente, na verdade somos
conduzidos por eles. Eles monitoram a nossa fantasia.
 Talvez por isto seja tão difícil a distância crítica necessária.
 Mas se há a dominação não acreditamos que seja total (e aí a minha posição se diferencia da de Baudry). Concordo com Ismail Xavier quando no texto "cinema: Revelação e Engano" (Do Livro "O Olhar", vários autores, Cia de Letras, 1988, São Paulo) afirma: "o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista". Se observamos "com ele o mundo", devemos "colocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação com o aparato".
 Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível. (grifo meu).
 Por mais que um diretor tente nos conformar à sua visão, a passividade não é total. Há espaço para uma releitura.
Esta expressão "enxergar mais" nos revela que o real é mais complexo. Se damos conta do real através de uma relação dialética entre o sujeito do conhecimento e o objeto de conhecimento, na prática acontece muitas vezes o reducionismo. Ou seja, terminamos por amordaçar a realidade, aprisionando-a com as nossas interpretações, com nossas categorias racionais, que sempre tem características sistemáticas, articulações lógicas que aparentemente dão conta do real na sua plenitude.
 Talvez esta seja a herança negativa do pensamento cartesiano que reduz o real à pura extensão. Para Descartes que considerava como critério de verdade a "clareza e distinção" não seria possível dar conta da verdade do mundo físico a não ser a partir da categoria matemática "extensão", idéia clara e distinta. Ou seja o real era empobrecido.
 Se é verdade que não reduzimos realidade à pura extensão, a perspectiva reducionista está muitas vezes presentes no processo de desvendamento da realidade.
 O preço disto é a eliminação de determinados elementos que fazem parte do real e que poderiam dar um grau de complexidade não suportada por nossa moldura intelectual reducionista.
 Mas se não é possível nos libertarmos totalmente desta postura reducionista, por outro lado é possível atenuar o aprisionamento do real, consequência do nosso reducionismo interpretativo, uma verdadeira camisa de força. É claro que não queremos significar que o real se manifesta por si mesmo, mas que é possível abrir espaço para outras interpretações possíveis que nunca, é claro, o esgotarão.
 Por isso, voltando à questão do documentário, ouso erigir um critério para medir a qualidade de um documentário do ponto de vista da verdade: "ele se valoriza quando mostra e faz pensar, mais do que quando define ou explica". (Apostila "Documentários: Histórica, crítica e processo de Produção" para Curso de "Cinema e Documentário" – de 28/08 a 13/11 – pág. 13)
 Se este critério é válido para o produtor, para o telespectador crítico, concordando ainda com Ismail Xavier, o reducionismo vai ser atenuado, vamos "enxergar mais" se estivermos atentos ao que "fora do campo torna visível". Ou seja (se interpreto bem a afirmação de Ismail), é naquilo que não é dito, naquilo que fica oculto, é que eu vou poder "enxergar mais".

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Estes critérios vão nos inspirar a partir de agora na continuidade de nossa resenha agora voltada para a análise do filme em si.

Como já afirmamos anteriormente desde o início do documentário Tendler consegue envolver o telespectador induzindo-o a se conformar ao seu olhar, ou seja, a ter uma imagem positiva da figura de Jango. E não apenas de João Goulart. As referência a JK e Getúlio Vargas, presidentes que o precederam, são altamente elogiosas. Tiveram um projeto altamente positivo com preocupação social que é continuado por Jango. Jango é o herdeiro de um projeto político com preocupação social iniciado por Getúlio Vargas.
 A competência de Silvio Tendler no uso do aparato cinematográfica é digna de elogios. Logo no início do filme a música de Milton Nascimento e Wagner Tiso, acompanhada por fotos de João Goulart, sempre sorridente, prepara o nosso espírito para a adesão, mexe com as nossas emoções, com os nossos sentimentos. Esta música triste, suave, com a formidável voz de Milton, nos enleva, nos toca. Prepara-nos para o que virá, ou seja, uma adesão completa à perspectiva do diretor que é de passar uma imagem positiva do governo João Goulart.
 Este perfil positivo é destacado em outras partes do filme principalmente nas cenas já bem próximas do golpe e posteriores. Nestas cenas não somente a música mas a montagem, como por exemplo, a alternância de cenas do "Encouraçado Potemkim" com cenas da revolta dos Marujos ou fotos de João Goulart durante o chamado "Comício da Central" dão um ar de dramaticidade que nos envolvem definitivamente.
 A imagem de Jango como grande estadista já é destacada mesmo antes de assumir a presidência na sua viagem a URSS. Mas mais do que isto estas cenas da viagem querem nos fazer acreditar que Jango, em nome do interesse maior da nação, já se colocava contra os interesses imperialistas das nações capitalistas ocidentais (principalmente os Estados Unidos), desenvolvendo uma política externa independente.
 Tendler é competente para nos mostrar um presidente sempre equilibrado, disposto ao sacrifício pessoal ao invés do sacrifício da nação, sempre colocando o interesse da nação acima de tudo, com uma ação sempre marcada pela preocupação com a justiça social, com o bem estar dos mais pobres, que se expressou, principalmente, pelas tentativas de implementar as reformas de base.
 Mesmo quando pune determinadas pessoas como lideranças da revolta dos marujos ou quando decreta o Estado de Sítio, sempre é em nome da nação, tem o fim de salvaguardar um projeto político que propõe um capitalismo menos selvagem.
 Os depoimentos tem um papel chave neste documentário. Aliás em todos documentários. Dão a chancela necessária para o grau de verdade dos fatos apresentados.
Vão comprovar não somente que Jango tinha uma preocupação com a justiça social mas tinha apoio popular.
Ao lado de depoimentos de participantes do golpe que criticam o governo João Goulart, há também os depoimentos daqueles do campo progressista e de esquerda que reforçam a imagem positiva do governo Jango mesmo que não se refiram diretamente a ele.
É difícil não concordar os depoimentos favoráveis a Jango mesmo contrapondo-os aos depoimentos desfavoráveis como o do Gen. Muricy, participante e apoiador do Golpe de 64. Estes últimos visam, justamente, reforçar a visão positiva na medida em que se constituem como contraponto negativo.
Mas, apesar deste envolvimento, é possível como em todo documentário ter uma postura crítica, "enxergar mais" através do que não é dito.
À primeira vista temos a impressão de que Silvio Tendler "mostra e faz pensar" ao entrevistar pessoas a favor e contra o governo Jango. Porém os que se colocaram contra este governo estão ligados direta ou indiretamente ao projeto da ditadura militar que é claramente caracterizada durante o filme como antidemocrático, violento, vinculado aos interesses da classe dominante, do imperialismo norte americano, impeditivo de uma participação política do povo. De outro lado, depoimentos de pessoas que, mesmo quando não fazem nenhuma referência elogiosa a Jango, reforçam a imagem positiva passada por Tendler.
Damos exemplos: Francisco Julião, ex-dirigente das ligas camponesa, afirma em seu depoimento que Jango defendia as reformas de base como a reforma Agrária, Reforma Urbana e Reforma tributária. O seu governo deu espaço para a participação popular. Aldo Arantes, ex-dirigente estudantil, e também Gregório Bezerra além de destacarem de forma positiva as reformas de base do governo Jango, chamam atenção para o clima democrático garantido por este governo que favorecia a organização popular.
Mas sabemos que no campo progressista e de esquerda não havia e até hoje não há a unanimidade em relação ao governo Jango. Já exemplificamos com a interpretação de Paulo Schilling.
 Fica então claramente evidenciada a parcialidade, o caráter ideológico deste documentário. Apresenta para nós uma única interpretação como se ela se identificasse com a objetividade dos fatos. Não são apresentados depoimentos de pessoas situadas no campo progressista e de esquerda com uma visão crítica e diferenciada sobre o Governo João Goulart.
 Aliás, me pareceu que há uma crítica a um setor de esquerda que com o seu suposto radicalismo impediu a consumação da democracia através de Jango (subjaz aí, talvez, a visão do PCB, que entendia a democracia no Brasil, mesmo sendo burguesa, como uma etapa necessária para o advento do Socialismo).
 Por isto este documentário não nos ajuda a entender os conflitos deste tempo na sua complexidade. Não estamos diante do real que por sua própria natureza é polissêmico e complexo mas com a construção de um real com um único significado e extremamente simplificado. O reducionismo cartesiano está aqui presente.
 As divergências não se manifestam nem em relação a fatos e atos comprovadamente polêmicos como a decretação do Estado de Sítio, Comício da Central, Plano Trienal. Se é verdade que Silvio Tendler revela, por exemplo, a oposição da CGT (Central Geral de Trabalhadores) ao Plano Trienal entendendo-o como prejudicial aos trabalhadores, a revela para afirmar que foi uma posição equivocada que somente ajudou aqueles interessados na desestabilização do Governo. Novamente a voz pausada do locutor traz a tona a explicação verdadeira dos fatos.
 Em todo caso continuamos sem nenhum depoimento de pessoa do campo progressista e de esquerda com críticas a estes atos e fatos. Quem avalia, por exemplo, o Plano Trienal é Celso Furtado, ex-ministro de Planejamento de João Goulart e idealizador do plano. No caso da Decretação de sítio, dá o sua versão um ex-lider do PTB na câmara (Bocayuva) (partido de Jango). Na sua versão esta proposta do governo como outras propostas e atos tinham o sentido de salvaguardar este projeto social-democrata. Segundo a sua versão, não tinha nenhum elemento que atentasse contra os direitos fundamentais. E se não foi aprovado pelo PTB (Partido de Janto) foi justamente porque a direita propôs emendas que o desfigurariam inserindo itens que atentariam contra direitos fundamentais e que acabariam por prejudicar os trabalhadores. Então temos PTB e o próprio governo unidos na rejeição de uma proposta deste mesmo governo em nome de valores democráticos. Para muitos do que assistem este documentário esta atitude é uma das confirmações do apreço que Jango tinha por estes valores. A democracia pesou mais que a segurança.
 No caso do "Comício da Central" o depoimento é de Raul Riff, ex-secretário de imprensa de Jango, e sempre como reforço à imagem positiva de João Goulart. Chega até a afirmar que Jango foi aconselhado a não realizar este comício mas resolveu assumi-lo. Fica evidenciada, portanto, mais uma virtude de Jango: a coragem.
 Por isso, concordamos com Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos quando afirmam em seu livro "Cinema e História do Brasil" à pág. 45: "o filme Jango está informado pela visão oferecida pelos agrupamentos de esquerda que mais apoio deram ao governo: o PTB e o PCB. O filme faz com que a visão destes grupos apareça como a mais válida sobre o tema (as opiniões contrárias ao governo oferecidas pelos militares funcionam como reforço da visão do PTB, do PCB e do filme)."
 E concluímos esta resenha afirmando que o documentário Jango mostra mas "não faz pensar". Diferentemente de outros documentários como o de Eduardo Coutinho que possibilita espaço para os diversos sujeitos com suas visões diferenciadas, deixando explícito que o real é sempre construído, o real é sempre fruto de interpretações dos sujeitos que tentam desvendá-lo. Enfim, que o real é sempre construído dentro de limites e possibilidades, é sempre muito humano, carrega as suas marcas
  
.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 1.Ramos, Freire Alcides e Bernardet, Jean Claude. Cinema e História do Brasil. São Paulo, Editora Contexto e Editora da Universidade de São Paulo,1988.
 2. Vários autores. O Olhar. (texto de Ismail Xavier: "Cinema: Revelação e Engano"). Cia de Letras, São Paulo, 1988.
 3. Apostila do Curso "Cinema e Documentários": "História, crítica e processo de Produção". Mnemocine - Ensino e Pesquisa, 1999.

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