terça-feira, 19 de junho de 2012

Cabra Marcado Para Morrer - Resenha.






CABRA MARCADO PARA MORRER
Direção: Eduardo Coutinho.
Ano de produção: 1962 – 1984
Lançamento do filme: 1984
Editora: Globo filmes
Duração do filme: 154 minutos
Narração: Ferreira Gullar, Tite Lemos e Eduardo Coutinho
ELENCO: Elisabeth Teixeira e família, João Virgíneo da Silva e os habitantes de Galiléia (Pernambuco).

Eduardo de Oliveira Coutinho nasceu em São Paulo, 11 de maio de 1933, é cineasta, considerado um dos mais importantes documentaristas da atualidade. Seu trabalho caracteriza-se pela sensibilidade e pela capacidade de ouvir o outro, registrando sem sentimentalismos as emoções e aspirações das pessoas comuns, sejam camponeses diante de processos históricos (Cabra Marcado para Morrer), moradores de um enorme condomínio de baixa classe média no Rio de Janeiro (Edifício Máster), metalúrgicos que conviveram com o então sindicalista Luís Inácio Lula da Silva (Peões) entre vários outros. Autor de um dos filmes mais importantes do cinema documental brasileiro, Cabra marcado para morrer (1984), prêmio da crítica internacional do Festival de Berlim, melhor filme no Festival du Réel, em Paris, e no de Havana, entre muitos outros. Estudou cinema no Institut des Hautes Études Cinematographiques (IDHEC) de Paris, em meados dos anos 50, e voltou ao Brasil em 1960, e se engajou no Cinema Novo. Começou como gerente de produção de Cinco vezes favela (1962) e como cor roteirista de A falecida (1965), de Leon Hirszman. Em 1962, iniciou e viu interrompida, pelo golpe militar, as filmagens de Cabra marcado para morrer (que só seria retomado em 1980 e concluído em 1984). Em seguida, dirigiu três filmes de ficção: O pacto, episódio do longa-metragem ABC do amor (1966), O homem que comprou o mundo (1968) e Faustão (1970). Dirigiu documentários para o Globo Repórter, entre eles Seis dias de Ouricuri (1976), Teodorico, o imperador do sertão (1978) e Exu, uma tragédia sertaneja (1979). A partir dos anos 80, passou à direção de documentários, entre eles, Volta Redonda, memorial da greve (1989), Boca do lixo (1994), Babilônia 2000 (2000) e Edifício Máster (2002). O longa Moscou (2009) – que retrata o processo de ensaio de uma peça pelo grupo Galpão –, recebeu o prêmio da crítica de melhor filme documentário do Festival Paulínia de Cinema, em 2009.
Eduardo Coutinho cursou Direito em São Paulo, mas não concluiu. Em 1954, aos 21 anos, teve seu primeiro contato com cinema no Seminário promovido pelo MASP e dirigido por Marcos Marguliès. Trabalhou como revisor na revista Visão (1954-57) e dirigiu, no teatro, uma montagem da peça infantil Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado. Ganhou um concurso de televisão respondendo perguntas sobre Charles Chaplin. Com o dinheiro do prêmio, foi para a França estudar direção e montagem no IDHEC, onde realizou seus primeiros documentários. De volta ao Brasil em 1960, teve contato com o grupo do Cinema novo e integrou-se ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). No núcleo dirigido por Chico de Assis, trabalhou na montagem da peça Mutirão em Nosso Sol, apresentada no I Congresso dos Trabalhadores Agrícolas que aconteceu em Belo Horizonte em 1962. Foi gerente de produção do primeiro filme produzido pelo CPC, o longa-metragem de episódios Cinco Vezes Favela. Escolhido para dirigir a segunda produção do CPC, Coutinho começou a trabalhar num projeto de ficção baseado em fatos reais, reconstituindo o assassinato do líder das Ligas Camponesas João Pedro Teixeira, a ser interpretado pelos próprios camponeses do Engenho Galiléia, no interior de Pernambuco, inclusive a viúva de João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira, que faria o seu próprio papel. O filme se chamaria Cabra Marcado para Morrer, e chegou a ter duas semanas de filmagens, até o Golpe Militar de 1964. Parte da equipe foi presa sob a alegação de comunismo e o restante se dispersou, interrompendo a realização do filme por quase 20 anos.
Em Abril de 1962 inicia-se a produção de: Cabra Marcado Para Morrer, dirigido por Eduardo Coutinho, o filme inicia com uma musica mostrando um país subdesenvolvido, na temática fílmica mostra a população suburbana e crianças trabalhando o que não é muito diferente de hoje, o que mostra o poder apenas nas mãos de poucos, esse que contaria a história política do líder da liga camponesa de Sapé (Paraíba), João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. No entanto, com o golpe de 31 de março, as forças militares cercam a locação no engenho da Galiléia e interrompem as filmagens. No enterro de João Pedro Teixeira, Elisabeth Teixeira sua esposa, compareceu com seis dos seus nove filhos, os trabalhadores se reuniram em frente à liga camponesa de sapé, sendo na época a maior do nordeste, com mais de sete mil sócios.
João Pedro Teixeira morreu com quarenta e quatro anos de idade, ele e todos os outros membros da liga, lutavam por direitos trabalhistas e por uma melhor qualidade de vida no campo. Em 15 de janeiro de 1964, houve um conflito entre policias e trabalhadores de uma usina e camponeses no povoado Sapé, onze pessoas morreram nesse conflito e a região foi ocupada por policiais, o que se tornou impossível a realização da filmagem no local. Foi no engenho Galiléia em Pernambuco aonde tinha nascido à primeira liga camponesa em 1955, que Eduardo Coutinho continua a filmagem. Em 26 de fevereiro de 1964, foi iniciada a primeira tomada do filme com camponeses que acabara de conseguir suas terras após quatro anos de luta. João Mariano, que fez o papel de João Pedro Teixeira, não era de Galiléia, no projeto de filmagem com os participantes originais, só restaram Elisabeth e seus filhos. Em 01 de Abril de 1964, o trabalho foi interrompido, Galiléia foi invadida pelo exército, os principais lideres camponeses e alguns membros da equipe também foram presos, mas alguns conseguiram fugir para Recife, nesse período todos os materiais da filmagem foram aprendidos, mais a maior parte das filmagem foram salva por ter sido enviado antes para o laboratório no Rio de Janeiro. Só em Fevereiro de 1981, foi possível o retorno as filmagem, apenas dois camponeses que iniciaram o filme estão vivos, José Hortêncio da Cruz e João Virgíneo Silva.
O começo da narrativa de um dos camponeses narra a lutar que todos da região vivem, o dilema de enterrar os parentes mortos, aonde só tinha um caixão na prefeitura para servir a comunidade, o caixão servia apenas para levar o corpo ao cemitério e logo teria que devolver o caixão à prefeitura, o famoso “Nono”. Galiléia era divida em lotes nos quais moram 150 famílias que pagavam anualmente ao dono do engenho para poder usar a terra. O dono do engenho decidiu expulsar todos os moradores de Galiléia após descobrir que a liga não se preocupavam apenas com os votos, mais tinha outras lutas para conquistar. Logo os moradores dessa liga decidiram contratar um advogado para representar os camponeses. A desapropriação por interesse social de Galiléia foi feita em Dezembro de 1959 através de justa e prévia em dinheiro como previa a constituição, mas ate hoje os camponeses não tem as escritura de suas terras.   
Dezessete anos depois, o diretor Eduardo Coutinho volta à região e reencontra a viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira -- que até então vivia na clandestinidade e muitos dos outros camponeses que haviam atuado no filme antes brutalmente interrompido.
As Ligas Camponesas vinham sendo criadas desde meados dos anos 50 com o objetivo de conscientizar e mobilizar o trabalhador rural na defesa da reforma agrária. Durante o governo de João Goulart (1961-64), o número dessas associações cresceu muito e, junto com elas, também se multiplicavam os sindicatos rurais. Os camponeses, organizados nessas ligas ou em sindicatos ganharam mais força política para exigir melhores condições de vida e de trabalho.
A renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, após apenas sete meses de governo, abriu uma grave crise política, já que seu vice, João Goulart, não era aceito pela UDN e pelos militares, que o acusavam de promover agitação social e de ser simpático ao comunismo. Assim como esses setores eram contrários à posse de Jango, existiam outros que defendiam o cumprimento da Constituição, como o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
O impasse foi resolvido com a adoção do regime parlamentarista de governo, aprovado pelo Congresso. Com esse regime, Jango era apenas chefe de Estado, sendo que o poder efetivo de decisão estava nas mãos de um primeiro-ministro escolhido pelos deputados e senadores. Iniciava-se assim um dos períodos mais obscuros da história do Brasil, com 21 anos de ditadura militar que promoveu uma violenta onda de repressão sobre os movimentos de oposição, além de ter gerado uma menor concentração de renda, agravando a questão social, produzindo mais fome e miséria. Os "anos de chumbo" da ditadura ocorreram após o AI5 (Ato Institucional número 5), no final do governo Costa e Silva (1968), estendendo-se por todo governo Médici (1969-1974).
Diante da crise econômica, o regime parlamentarista imposto pelos conservadores, se mostrava ineficiente, com a sucessão de vários primeiros-ministros, sem que a crise fosse atenuada. Esse cenário fortalecerá o restabelecimento do presidencialismo, conquistado através de um plebiscito em 06 de janeiro de 1963. Reassumindo a plenitude de seus poderes, Jango lançou as reformas de base apoiadas por grupos nacionalistas e de esquerda. Elas incluíam a reforma agrária, a reforma do sistema bancário, a reforma tributária e a reforma eleitoral.
Muitos comícios foram organizados em apoio às reformas, destacando-se um comício-gigante realizado na Central do Brasil do Rio de Janeiro em 13 de março. A mobilização popular nos comícios assustava as elites que, articuladas com as forças armadas e apoiadas pelos setores mais conservadores da Igreja, desferiram um golpe de Estado em 31 de março de 1964.
No retorno a Galiléia, a equipe do filme organizou o material que restou das filmagens de 1962 e 64, para mostrar aos moradores de Galiléia, os atores do filme eram convidados especiais para essa projeção. O que mais interessava aos atores eram identificar os mesmos, dezessete anos mais novos. O filme mostra a vida dos moradores da Galiléia e também dos ex-participantes do filme que se encontra em outros estados, trabalhando em fabricas. Um dos únicos atores que sabiam ler e que morava em Galiléia era Cícero e que também foi assistente de produção do filme. Elisabeth Teixeira estava desaparecida desde 64, ninguém sabia onde ela estava, o único que sabia era Abraão seu filho mais velho, que também é jornalista, Abraão morava em Patos no sertão da Paraíba, depois de quatro hora de viagem chagaram a São Rafael, onde Elisabeth morava com seu filho Carlos e ela tinha mudado o nome para Martha Maria da Costa.
Elisabeth Teixeira casou com João Pedro em 1942, se conheceram em um barracão e depois fugiram, João Pedro trabalhava em um pedreira e logo depois começou a lutar pelos sindicatos rurais, depois foi para Paraíba e começou a fundar a liga camponesa de Sapé em 1958 e em 1962 ele foi assassinado, moravam no sitio do pai de Elisabeth, ele sabia ler e escrever, era de religião Evangélica, e Elisabeth era Católica.
João Pedro Teixeira foi morto em uma emboscada no dia 02 de Abril de 1962, por dois soldados da policia militar, um vaqueiro da fazenda do latifundiário Agnaldo Veloso Borges, suplente de deputado estadual, o juiz de Sapé decretou a prisão preventiva de Agnaldo apontado como um dos mandantes do crime, este se livrou da prisão e do processo assumindo uma cadeira na assembléia legislativa do estado de Pernambuco, Agnaldo era o quinto suplente, um deputado e quatro suplentes renunciaram no mesmo dia para Agnaldo tomar posse. Em março de 1965, os dois policiais que mataram João Pedro foram absorvidos por unanimidade pelo tribunal do júri.
João Mariano era o único dos atores que não tinha participação do movimento camponês, ele foi expulso do engenho estava desempregado e era participante de uma congregação de uma igreja Batista em Vitoria de Santo Antão. Ele falou dos movimentos das ligas camponesas, das lutas políticas e por terras entre muitos produtores rurais.
Após a morte de João Pedro, Elisabeth foi para Brasília depor na comissão de inquérito, foi presa por varias vezes, liderou a liga, mais logo deixou a liga e saiu da cidade. O exército da Paraíba invadiu Galiléia a procura de três camponeses: João Virgíneo, Zezé e Rosário e também as pessoa que estavam filmando, pensando que esses fossem estrangeiros revolucionários que apoiavam os movimentos camponeses. Levaram todos os materiais de filmagem de Cabra Marcado para Morrer, e tudo que eles encontravam, restando apenas uma câmara que foi enterrada, e dois livros que ficaram na casa de um morador de Galiléia, e nessa invasão alguns dos integrantes da equipe de filmagem foram presos. O exército queria armas que supostamente os moradores da região tinham para fazer a revolução, entregue pelos comunistas Cubanos. No depoimento o morador falou aos policiais que o que eles tinham era fome, doenças e precisavam apenas de terras para trabalhar e não armas para brigar e matar. Mostrando assim que trabalhadores lutar apenas com as mãos e com a voz, mais como são fracos ficam sempre sem serem ouvidos, e no mesmo depoimento ele aponta aos policiais quem tem armas na região, os dois fazendeiros, dizendo ele, esses dois têm muitas armas, vá lá pegar, pois esses têm muitas armas eles são cangaceiros, e os policiais retomam dizendo, essas armas que eles têm são deles, queremos as tuas, nos contaram que vocês têm mais de cinco mil armas para fazer a revolução.
João Virgíneo passou sete dias escondido, quando não pode mais, ele se entregou e passou seis anos preso, ficou sendo submetido à humilhação, perdeu um olho e ficou surdo de um ouvido de tanto apanhar, ficou vinte e quatro horas dentro de uma força, perdeu um carro para os policiais e muito mais, condenado a dez anos e seis meses de prisão João Virgíneo foi solto em 1970, após cumprir seis anos de sua pena, a casa de detenção do Recife foi desativada e transformada em casa da cultura em 1976.
No dia 3 de abril de 1964, uma semana antes da prisão de João Virgíneo, Elisabeth Teixeira fugiu para Recife juntamente com a equipe do filme, não podendo voltar para Sapé, aonde seria presa, Elisabeth mudou o seu nome para Marta, refugio-se na casa de Manoel Sarafim em Japoatão, fez passa por cunhada de Manoel Sarafim, não saia de casa, dois meses depois ela se entregou as autoridade da Paraíba, ficou presa por quatro meses e depois foi morar na casa do pai. Logo após ser solta, os policiais voltaram procurar para prender, ela sabendo que iria ser torturada, fugiu com Carlos o seu filho mais novo. Em setembro de 1964, logo após a libertação de Elisabeth, João Alfredo Dias (o negro Juba) e Pedro Inácio de Araujo, fundadores da liga de Sapé desapareceram logo depois de saírem da prisão, três dias depois do desaparecimento um jornal informava que dois corpos foram encontrados mutilados em uma estada do interior da Paraíba, tratavam de execução do esquadrão da morte, os corpos nunca foram identificados. Em 1962, as perseguições não se limitavam apenas a João Pedro e Elisabeth, três meses depois do assassinato de João Pedro, João Pedro seu filho sofreu um atentado levando três tiros chegando a falecer. Em dezembro de 1962, oitos meses após a morte de João Pedro Teixeira, Marluci a filha mais velha morreu de ressentimento da morte do pai, tomou arsênico. Oito filhos de Elisabeth foram criados por familiares de Elisabeth, (pais e tios), Abrão morava na capital aonde estudava e Isaac morava em Cuba desde 1963, como bolsista do governo cubano. Após a descoberta onde Elisabeth morava, ela retornou para Sapé para encontrar os seus outros filhos.
João Pedro Teixeira nasceu em uma cidade chamada Guarabira, foi enterrado no cemitério de Sapé, no seu tumulo não se encontra nada escrito, mais na cruz colocada a beira da estada aonde ele morreu, estar escrito: “Aqui jaz João Pedro Teixeira, marco da Reforma Agrária”, nada se sabe sobre a infância deste e ele ficou órfão de pai e mãe logo cedo, não tem se que uma fotografia dele vivo.
Em 1981, dezessete anos após a fuga de Elisabeth, o produtor do filme começa a procurar dos filhos de Elisabeth, entrevistando cada um. O pai de Elisabeth o Sr. Manoel Justino da Costa, entrou em conflito com João Pedro Teixeira, por cauda de uma pequena propriedade que o Sr. Manoel fendeu a um comerciante, onde João Pedro Teixeira morava com a família, cortando assim as relações familiares. João Pedro Teixeira lutou na justiça pelos direitos de continuar morando no sitio ou de ser indenizado pelas benfeitorias.  A primeira a ser entrevistada foi Maria das Neves Altina Teixeira, conhecida como “Nevinha”, era professora do grupo escolar e morava próximo da casa do avô. Outro entrevistado foi João Pedro Teixeira Filho o “Peta”. Em outubro de 1981, foi entrevistada no estado do Rio de Janeiro, na cidade de Caxias do Sul, baixada Fluminense, outra filha, a Marta, dando continuidade com o filho que moravam em Cuba, Isaac Teixeira estudante de medicina, atreves de uma equipe de televisão local a pedido do produto desse filme. Outro filho o José Eldes, foi entrevistado em maio de 1982, no local de trabalho, uma fabrica, após algumas exigências feitas ao produtor.  No mesmo dia no bairro de Olaria no estado do Rio de Janeiro foi entrevistada outra filha a Marines. Todos em seus depoimentos relataram as lutas, o abandono por parte da mãe, por não poder criar todos os filhos, a família na hora da precisão não apoiaram fazendo com que muitos fossem moram em outros estados, mais que todos tinham os mesmos desejos de poder encontrar a mãe e os irmãos.
Na ultima entrevista com Elisabeth, na cidade de São Rafael, cidade esta em extinção pelo fato do departamento nacional de obras contra a seca, ira criar uma represa na qual a cidade será inundada pelas águas, e a população estar lutando na justiça por melhor indenização de suas casas, pois os pequenos proprietários por não terem os títulos de apropriação de suas terras, acham injustos os valores indenizatórios de suas propriedades, o sindicato rural estar lutando junto aos proprietários.
Ao final da entrevista vários novos amigos de Elisabeth falaram sobre a amizade, o modo de vida que levava com os vizinhos e como ela ensinava ao filhos e ajudava a comunidade, Elisabeth comentava sobre o sindicato rural de São Rafael,  ajudando ao presidente desse sindicato, a perseguição dos latifundiários e políticos aos sindicatos por todo o Brasil. Elisabeth comentou sobre a emoção das filmagem, o reencontro que iria fazer com  os filhos e com os pais. Elisabeth após um mês das gravações deixou São Rafael e foi mora em Patos na Paraíba com seus filhos Abrão e Carlos, e até junho de 1983, Elisabeth só tinha conseguido reencontrar com dois dos seus oito filhos, Nevinha e Peta, ambos morando em Sapé.
O filme mostra o período da ditadura militar, o sofrimento das pessoas pobres, camponeses e industriários lutando por melhores condições de vida e salários, período esses que mostra a lutas pelos sindicatos e ligas camponesas sofrendo perseguições pelos políticos e latifundiários, mostrando que nesse país manda a classe oligárquica, mas que a massa não se cala e vai à luta por melhores condições de vida.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

João Goulart: 30 ano de silêncio.


História, Cinema e Memória.
Goulart, após 1964, foi execrado pela direita, desprezado pela esquerda e solenemente ignorado pela pesquisa universitária.
Jorge Ferreira.

Presidente João Goulart durante
cerimônia da posse

         Um dos melhores documentos para o pesquisador interessado em estudar João Goulart, e que durante muito tempo foi um dos únicos, é o filme Jango de Silvio Tendler. Nas palavras do narrador, o texto do jornalista Carlos Castello Branco traduz o sentimento de seu fim, “O Presidente João Goulart, sem condições de voltar ao Brasil, compelido a deixar a Argentina e aconselhado a não permanecer no Uruguai, morreu como peão perdido à procura de voltar ao seu galpão”.
         O filme Jango, do cineasta Silvio Tendler, foi produzido em 1984. É importante ressaltar que a conjuntura em que o filme é produzido, é marcada pela euforia provocada no processo de abertura política pós-ditadura militar. O filme não trata só de Jango. “O diretor, lembrou que João Goulart existiu e foi protagonista de um momento singular da história do país”. (FERREIRA:2008) Momento singular esse, em que o país viveu o início de seus piores e mais tristes dias de sua história. Jango, com o golpe parte para o exílio, primeiro no Uruguai e depois para Argentina, onde morreria sem poder voltar ao país de origem. A memória do ex-presidente havia sido apagada pela ditadura militar de 1964. Por que?
         O filme lembra que João Goulart participou da política do Rio Grande do Sul e em 1950 tornou-se deputado federal pelo PTB. Logo depois, o então presidente Getúlio Vargas o nomearia Ministro do Trabalho. Como narra no filme “Jango era o sangue novo que Getúlio queria para o trabalhismo”. Em suma, seu possível herdeiro.
         A constituição de 1946 tinha um dispositivo, em que se votava em Presidente, e separadamente para seu vice. Ou seja, era possível que um vice-presidente fosse eleito exatamente pelo principal partido de oposição ao do presidente. E por obra do destino, foi oque aconteceu nas eleições de 1961.
         A maioria da população escolheu o conservador udenista Jânio Quadros para presidência. E para vice o candidato do PTB, João Goulart. Com a renúncia inesperada de Jânio, Jango assume com uma plataforma de governo bastante diferente de seu antecessor. É importante lembrar que apesar do sucesso eleitoral do PTB nos anos 50, o partido vivia um momento de redefinição ideológica. “Em sua convenção de 1957, o PTB assumiu um projeto de cunho claramente reformista (...). No encerramento dos trabalhos, Goulart pronunciou um discurso radical e nacionalista a favor das reformas econômicas e sociais”.(FERREIRA: 2008) E completaria a historiadora Lucília de Almeida Neves Delgado “O PTB conheceu uma real guinada à esquerda da maioria de seus quadros”
         Quando na presidência, Jango, “fez o Brasil viver sua utopia”. A perspectiva de mudanças encheu um “trem de esperanças”, em um país de grandes desigualdades sociais. Para Silvio Tendler, Jango buscava a harmonia social, queria transformar a face perversa e selvagem do capitalismo, o queria mais humano. Seria possível? Democratização do uso da terra, voto do analfabeto, disciplina dos aluguéis, bases justas para o salário mínimo, seriam esses os nortes das Reformas de Base. “Jango, propunha o fim da fome e da miséria em um país em que a justiça sempre foi lado obscuro da democracia”.
         O então presidente Goulart recebia críticas, tanto da direita que o chamava de “inimigo do capitalismo” ou “fomentador da luta de classes”, quanto da esquerda que ansiava por reformas mais profundas. Em depoimento, Aldo Arantes, ex-presidente da UNE no período, afirma que a burguesia e as elites “não engoliam nem as limitadas reformas de base de Jango”. Aldo lembra também para a radicalização vivida, principalmente pela formação na direita de grupos paramilitares de extrema direita, como o M.A.C. Aldo ressalta que era um momento de maior participação democrática no país, em que se buscava resolver problemas de cunho estrutural, como Reforma Agrária e redistribuição de renda, por exemplo.
         De maneira inteligente, Silvio Tendler começa o filme mostrando a visita de João Goulart a China. Vale lembrar o contexto de guerra fria e o suposto alinhamento automático dos países com Washington. Como vice de JK e de Jânio, Jango mostraria para o mundo a peculiaridade da política externa independente brasileira. O então vice presidente seria o primeiro representante latino americano a romper o “gelo” da Guerra fria em sua visita a URSS.
         Certamente as imagens de Jango com Mao Tse Tung e Brejnev ficariam registradas na cabeça das elites e dos militares brasileiros. Jango, ao discursar no Congresso do Povo, mostrava ao mundo como queríamos nossa política externa: “Viva a amizade cada vez mais estreitam entre a China Popular e os Estados Unidos do Brasil, viva a amizade dos povos asiáticos, africanos e latino-americanos!”.
         O historiado Jorge Ferreira, mostra que o “sentimento reformista e a expectativa de um país mais justo manifestaram-se também nas urnas. Nas eleições legislativas de 1962, o PTB passou de 66 para 116 deputados, reduzindo o numero de cadeiras dos partidos conservadores, enquanto o plebiscito que decidiu pela volta do sistema presidencialista, em janeiro de 1963, com o apoio de um amplo leque político, inclusive militar e empresarial, consagrou a liderança de Jango.” (FERREIRA: 2008).
         Entretanto, um grande esquema, sobretudo de comunicação político ideológico, era montado via IPES-IBAD. Mesmo assim, a propaganda não evitou a vitória do PTB em 62 e 63, porém estimulou e radicalizou a sociedade. O Presidente, sem o apoio do PSD, dos Estados Unidos, que como mostra no filme, negava empréstimos ao presidente, mas negociava com os governadores de oposição como Carlos Lacerda, aproximou-se dos setores mais progressistas do PTB. A tradução disso seria o comício da Central do Brasil.
         Para o historiador começaria aí uma nova história, em que Jango foi interpretado e lembrado somente pelo fracasso na mobilização social. “Nada de mobilização sindical, camponesa e popular em torno das reformas, nada de sociedade que apoiava o presidente em seu programa”. Para a esquerda revolucionária, o apoio do movimento sindical e dos trabalhadores seria “peleguismo”, “paternalismo”, ou até mesmo “desvio da linha justa e consciências desviadas dos seus “verdadeiros” e “reais” interesses” O Golpe que viria da esquerda, veio dos militares conservadores. Em fevereiro de 1962, Wanderley Guilherme dos Santos publicava o número 5 do “Cadernos do povo brasileiro”, com o título Quem dará o Golpe no Brasil – “Que as forças do povo disponham sua linha de frente da melhor forma possível e que lutem de modo mais encarniçado. Já está em marcha o golpe contra o povo; que se ponha em marcha, então, o povo contra o golpe, no Brasil” (SANTOS:1962).
         Mais do que um golpe militar, a queda de João Goulart representava a derrota de um projeto. Com ele perdeu a esquerda, os movimento sociais, urbanos e rurais. Perderam intelectuais como Darcy Ribeiro, Celso Furtado e San Thiago Dantas que trabalhavam diretamente em seu governo. Perderam todos aqueles que acreditavam que o sonho de um Brasil mais justo e igualitario estava caminhando para sua concretização.
         Em recente livro publicado no final de 2006, Oswaldo Munteal, Jacqueline Ventapane e Adriano de Freixo escrevem, “Nesse momento, o projeto desenvolvimentista iniciado três décadas antes estava buscando incorporar de fato os setores populares, dentro de uma perspectiva nacionalista e reformista, considerando essa participação popular uma condição sine qua non para o desenvolvimento do País.” (MUNTEAL:2006)
         Entretanto não podemos esquecer que parte significativa da população civil brasileira apoiou o Golpe de 1964. O exemplo mais marcante é a Marcha da Família com Deus e pela Liberdade. Também não podemos esquecer a influencia dos meios de comunicação que expunham claramente sua insatisfação com o atual presidente. A resistência da esquerda, ou o suposto golpe planejado pelo governo se mostrou inexistente. João Goulart não queria uma guerra civil e um “banho de sangue”. ((MUNTEAL:2006)  Era o fim de um curto período democrático. O fim de um projeto de desenvolvimento, um projeto de nação. “O Golpe de 1964 acelerou a dependência, travou o desenvolvimento e desarticulou a sociedade civil numa proporção nunca antes vista na história do Brasil.
          O pensamento sobre o nosso país paralisou nas décadas seguintes. As vertentes críticas do modelo de desenvolvimento saíram politicamente derrotadas numa luta árdua pela autonomia do Brasil diante dos interesses internacionais. Os modelos de interpretação da Cepal com Prebish e Furtado, da teoria da dependência representada por Santos, Marini, Frank e Amin, assim como a tese de um desenvolvimento dependente e associado assinada por Faleto, Fernando Henrique e Weffort, assinalam um período em que o Brasil representava um problema para a Universidade. Havia, ainda que com limites, uma conexão entre os centros de pensamento e reflexão e a sociedade.” (MUNTEAL:2006).

Referências.
FERREIRA, Jorge (org.). Como as sociedades esquecem: Jango. In: a História vai ao cinema.Editora Record. 2008.
MUNTEAL Filho, Oswaldo (Org.) ; VENTAPANE, Jacqueline (Org.) ; FREIXO, Adriano de (Org.) . O Brasil de João Goulart: um projeto de Nação. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora PUC-Rio, 2006. 252 p.
SANTOS, Wanderley Guilherme. Quem dará o Golpe no Brasil. 1962.

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Texto extraído de Torres, Pedro Henrique. João Goulart – 30 ano de silêncio. Revista Agora. Nº1. 2007. (com adaptações).

terça-feira, 5 de junho de 2012

Resenha : filme/documentário Jango.


"JANGO"

 por Laerte Moreira dos Santos


O filme documentário "Jango" é de 1984 com produção e direção do cineasta Silvio Tendler.

Em apresentação deste documentário feita pela redação do Jornal "Folha de São Paulo", por ocasião da participação deste no Ciclo "1964:30 anos", lemos em artigo de 31 de março de 1994: "Realizado na época da campanha pelas eleições diretas para presidente, em 1984, "Jango" faz uma retrospectiva do governo João Goulart e dos acontecimentos que precederam sua deposição pelo golpe de 31 de março de 1964. Apesar do título, o filme escapa de um registro meramente personalista em torno da figura de João Goulart, aproveitando o momento político de sua realização para fazer um discurso sobre a volta da democracia. Tendler não se limita, na montagem dos documentos, ao golpe em si. Utiliza-se da personalidade de Jango como um pretexto para inserir uma colagem de imagens históricas do regime militar. A repressão às passeatas após 68 e o período de terror que marcaram o governo Médici são o ponto forte do filme. A brutalidade da imagens até então não havia sido livremente explorada pelo cinema brasileiro. Mesmo passados dez anos desde o fim do regime militar, as cenas do documentário ainda mantêm seu impacto...."

A frase destacada por mim se tornará o ponto de partida para a elaboração desta resenha.
A afirmação de que o registro da figura do ex-presidente João Goulart é apenas um pretexto para uma abordagem do contexto histórico do golpe de 64, é, a meu ver, passível de questionamentos.
Passa a idéia de que tal registro seria no documentário algo secundário. O principal no documentário seria o contexto do Golpe de 64.

Se é verdade que o documentário não pretende um registro "meramente personalista da figura de João Goulart", por outro lado, nas palavras do próprio Silvio Tendler (Folhetim, nº 376, p. 8 – Jornal "Folha de São Paulo", sem data), o objetivo era o de "mostrar a necessidade de um projeto político, econômico e social que contemplasse o lado de justiça social". E para este cineasta "este projeto estava no resgate da figura de João Goulart".
Ou seja, fica claro que a figura de Jango no filme vai estar vinculada intrinsecamente à interpretação que o cineasta pretende dar ao contexto histórico do golpe de 64 e, portanto, não é mero pretexto nem algo secundário.
 Em um primeiro momento poderíamos concluir que Silvio Tendler estaria evidenciando com esta sua afirmação a carga de subjetividade, de interpretação pessoal, presente em todo filme documentário. Afinal a possibilidade da vinculação da figura de Jango com um projeto, vamos chamar assim, social-democrata, é uma entre outras possibilidades. Há outras visões sobre o governo João Goulart. Por exemplo o intelectual Paulo Schilling tem a seguinte avaliação: "Foi o mais eficiente agente das classes dominantes e do imperialismo na contenção do avanço popular. De traição em traição chegou a entrega do poder para a direita."

Sem ainda nos reportar ao filme, mas iniciando um processo de crítica, questionamos, outrossim, a palavra "resgate" no contexto desta afirmação.

Esta palavra passa a idéia de que determinados fatos históricos comprovariam a vinculação da figura de Jango com um projeto político social-democrata. Caberia a Silvio Tendler resgatá-los, ou seja, trazer à tona a "verdade dos fatos" até para fazer justiça a figura de Jango. Subjaz a idéia de que não se trata de interpretação mas de objetividade dos fatos.
 Agora, continuando a nossa resenha tendo em conta o que nos é passado pelo documentário, constatamos que nosso cineasta consegue fazer esta vinculação com competência. Revela um grande domínio da técnica desta forma de fazer cinema e da linguagem cinematográfica.
 Tenta nos convencer, e acredito que consegue este convencimento com uma grande parte do público que assiste e assistiu este documentário, tenta nos convencer que o que é projetado é realmente expressão fidedigna dos fatos históricos acontecidos. Que a sua interpretação é a própria realidade. E consegue isto não somente através da voz do locutor com um discurso apoiado em fontes bibliográficas simpáticas ao governo Jango ou depoimentos de cientistas sociais ou de pessoas participantes deste contexto histórico. Usa também e com maestria todo a aparato cinematográfico. E este é um elemento fundamental para nos seduzir.
 E este momento da resenha, permito-me uma pequena digressão a respeito desta sedução provocada pelo aparato cinematográfico.
 Sabemos, e não é de hoje, que "os fatos não falam por si mesmos, é necessário interpretá-los", ou seja, o que chamamos de real é carregado de subjetividade devido ao fato que a realidade é sempre interpretada. Disto não escapa o documentário que mais do que reproduzir a realidade, a constrói.
 Mas o interessante é que, apesar de sabemos disto, somos constantemente seduzidos pela linguagem e pelo aparato cinematográfico que estão presentes também nos documentários.
Todo o contexto para a projeção de um filme: a sala escura, a tela grande, o silêncio, recursos como a música que tenta nos seduzir pela emoção, pelo sentimento, sem contar a própria forma como o filme é montado, tudo isto colabora para diluir o grau de criticidade de nosso olhar e nos conformarmos ao olhar do diretor do filme.
 Se concordarmos totalmente com a análise do caráter do cinema feito por Jean-Louis Baudry, na década de 70, pois ela nos levaria a um beco sem saída, diríamos com ele que, apesar da ilusão que temos de sobrevôo, de pairar com a nossa consciência crítica acima dos aparatos técnicos e do contexto envolvente, na verdade somos
conduzidos por eles. Eles monitoram a nossa fantasia.
 Talvez por isto seja tão difícil a distância crítica necessária.
 Mas se há a dominação não acreditamos que seja total (e aí a minha posição se diferencia da de Baudry). Concordo com Ismail Xavier quando no texto "cinema: Revelação e Engano" (Do Livro "O Olhar", vários autores, Cia de Letras, 1988, São Paulo) afirma: "o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista". Se observamos "com ele o mundo", devemos "colocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação com o aparato".
 Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível. (grifo meu).
 Por mais que um diretor tente nos conformar à sua visão, a passividade não é total. Há espaço para uma releitura.
Esta expressão "enxergar mais" nos revela que o real é mais complexo. Se damos conta do real através de uma relação dialética entre o sujeito do conhecimento e o objeto de conhecimento, na prática acontece muitas vezes o reducionismo. Ou seja, terminamos por amordaçar a realidade, aprisionando-a com as nossas interpretações, com nossas categorias racionais, que sempre tem características sistemáticas, articulações lógicas que aparentemente dão conta do real na sua plenitude.
 Talvez esta seja a herança negativa do pensamento cartesiano que reduz o real à pura extensão. Para Descartes que considerava como critério de verdade a "clareza e distinção" não seria possível dar conta da verdade do mundo físico a não ser a partir da categoria matemática "extensão", idéia clara e distinta. Ou seja o real era empobrecido.
 Se é verdade que não reduzimos realidade à pura extensão, a perspectiva reducionista está muitas vezes presentes no processo de desvendamento da realidade.
 O preço disto é a eliminação de determinados elementos que fazem parte do real e que poderiam dar um grau de complexidade não suportada por nossa moldura intelectual reducionista.
 Mas se não é possível nos libertarmos totalmente desta postura reducionista, por outro lado é possível atenuar o aprisionamento do real, consequência do nosso reducionismo interpretativo, uma verdadeira camisa de força. É claro que não queremos significar que o real se manifesta por si mesmo, mas que é possível abrir espaço para outras interpretações possíveis que nunca, é claro, o esgotarão.
 Por isso, voltando à questão do documentário, ouso erigir um critério para medir a qualidade de um documentário do ponto de vista da verdade: "ele se valoriza quando mostra e faz pensar, mais do que quando define ou explica". (Apostila "Documentários: Histórica, crítica e processo de Produção" para Curso de "Cinema e Documentário" – de 28/08 a 13/11 – pág. 13)
 Se este critério é válido para o produtor, para o telespectador crítico, concordando ainda com Ismail Xavier, o reducionismo vai ser atenuado, vamos "enxergar mais" se estivermos atentos ao que "fora do campo torna visível". Ou seja (se interpreto bem a afirmação de Ismail), é naquilo que não é dito, naquilo que fica oculto, é que eu vou poder "enxergar mais".

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Estes critérios vão nos inspirar a partir de agora na continuidade de nossa resenha agora voltada para a análise do filme em si.

Como já afirmamos anteriormente desde o início do documentário Tendler consegue envolver o telespectador induzindo-o a se conformar ao seu olhar, ou seja, a ter uma imagem positiva da figura de Jango. E não apenas de João Goulart. As referência a JK e Getúlio Vargas, presidentes que o precederam, são altamente elogiosas. Tiveram um projeto altamente positivo com preocupação social que é continuado por Jango. Jango é o herdeiro de um projeto político com preocupação social iniciado por Getúlio Vargas.
 A competência de Silvio Tendler no uso do aparato cinematográfica é digna de elogios. Logo no início do filme a música de Milton Nascimento e Wagner Tiso, acompanhada por fotos de João Goulart, sempre sorridente, prepara o nosso espírito para a adesão, mexe com as nossas emoções, com os nossos sentimentos. Esta música triste, suave, com a formidável voz de Milton, nos enleva, nos toca. Prepara-nos para o que virá, ou seja, uma adesão completa à perspectiva do diretor que é de passar uma imagem positiva do governo João Goulart.
 Este perfil positivo é destacado em outras partes do filme principalmente nas cenas já bem próximas do golpe e posteriores. Nestas cenas não somente a música mas a montagem, como por exemplo, a alternância de cenas do "Encouraçado Potemkim" com cenas da revolta dos Marujos ou fotos de João Goulart durante o chamado "Comício da Central" dão um ar de dramaticidade que nos envolvem definitivamente.
 A imagem de Jango como grande estadista já é destacada mesmo antes de assumir a presidência na sua viagem a URSS. Mas mais do que isto estas cenas da viagem querem nos fazer acreditar que Jango, em nome do interesse maior da nação, já se colocava contra os interesses imperialistas das nações capitalistas ocidentais (principalmente os Estados Unidos), desenvolvendo uma política externa independente.
 Tendler é competente para nos mostrar um presidente sempre equilibrado, disposto ao sacrifício pessoal ao invés do sacrifício da nação, sempre colocando o interesse da nação acima de tudo, com uma ação sempre marcada pela preocupação com a justiça social, com o bem estar dos mais pobres, que se expressou, principalmente, pelas tentativas de implementar as reformas de base.
 Mesmo quando pune determinadas pessoas como lideranças da revolta dos marujos ou quando decreta o Estado de Sítio, sempre é em nome da nação, tem o fim de salvaguardar um projeto político que propõe um capitalismo menos selvagem.
 Os depoimentos tem um papel chave neste documentário. Aliás em todos documentários. Dão a chancela necessária para o grau de verdade dos fatos apresentados.
Vão comprovar não somente que Jango tinha uma preocupação com a justiça social mas tinha apoio popular.
Ao lado de depoimentos de participantes do golpe que criticam o governo João Goulart, há também os depoimentos daqueles do campo progressista e de esquerda que reforçam a imagem positiva do governo Jango mesmo que não se refiram diretamente a ele.
É difícil não concordar os depoimentos favoráveis a Jango mesmo contrapondo-os aos depoimentos desfavoráveis como o do Gen. Muricy, participante e apoiador do Golpe de 64. Estes últimos visam, justamente, reforçar a visão positiva na medida em que se constituem como contraponto negativo.
Mas, apesar deste envolvimento, é possível como em todo documentário ter uma postura crítica, "enxergar mais" através do que não é dito.
À primeira vista temos a impressão de que Silvio Tendler "mostra e faz pensar" ao entrevistar pessoas a favor e contra o governo Jango. Porém os que se colocaram contra este governo estão ligados direta ou indiretamente ao projeto da ditadura militar que é claramente caracterizada durante o filme como antidemocrático, violento, vinculado aos interesses da classe dominante, do imperialismo norte americano, impeditivo de uma participação política do povo. De outro lado, depoimentos de pessoas que, mesmo quando não fazem nenhuma referência elogiosa a Jango, reforçam a imagem positiva passada por Tendler.
Damos exemplos: Francisco Julião, ex-dirigente das ligas camponesa, afirma em seu depoimento que Jango defendia as reformas de base como a reforma Agrária, Reforma Urbana e Reforma tributária. O seu governo deu espaço para a participação popular. Aldo Arantes, ex-dirigente estudantil, e também Gregório Bezerra além de destacarem de forma positiva as reformas de base do governo Jango, chamam atenção para o clima democrático garantido por este governo que favorecia a organização popular.
Mas sabemos que no campo progressista e de esquerda não havia e até hoje não há a unanimidade em relação ao governo Jango. Já exemplificamos com a interpretação de Paulo Schilling.
 Fica então claramente evidenciada a parcialidade, o caráter ideológico deste documentário. Apresenta para nós uma única interpretação como se ela se identificasse com a objetividade dos fatos. Não são apresentados depoimentos de pessoas situadas no campo progressista e de esquerda com uma visão crítica e diferenciada sobre o Governo João Goulart.
 Aliás, me pareceu que há uma crítica a um setor de esquerda que com o seu suposto radicalismo impediu a consumação da democracia através de Jango (subjaz aí, talvez, a visão do PCB, que entendia a democracia no Brasil, mesmo sendo burguesa, como uma etapa necessária para o advento do Socialismo).
 Por isto este documentário não nos ajuda a entender os conflitos deste tempo na sua complexidade. Não estamos diante do real que por sua própria natureza é polissêmico e complexo mas com a construção de um real com um único significado e extremamente simplificado. O reducionismo cartesiano está aqui presente.
 As divergências não se manifestam nem em relação a fatos e atos comprovadamente polêmicos como a decretação do Estado de Sítio, Comício da Central, Plano Trienal. Se é verdade que Silvio Tendler revela, por exemplo, a oposição da CGT (Central Geral de Trabalhadores) ao Plano Trienal entendendo-o como prejudicial aos trabalhadores, a revela para afirmar que foi uma posição equivocada que somente ajudou aqueles interessados na desestabilização do Governo. Novamente a voz pausada do locutor traz a tona a explicação verdadeira dos fatos.
 Em todo caso continuamos sem nenhum depoimento de pessoa do campo progressista e de esquerda com críticas a estes atos e fatos. Quem avalia, por exemplo, o Plano Trienal é Celso Furtado, ex-ministro de Planejamento de João Goulart e idealizador do plano. No caso da Decretação de sítio, dá o sua versão um ex-lider do PTB na câmara (Bocayuva) (partido de Jango). Na sua versão esta proposta do governo como outras propostas e atos tinham o sentido de salvaguardar este projeto social-democrata. Segundo a sua versão, não tinha nenhum elemento que atentasse contra os direitos fundamentais. E se não foi aprovado pelo PTB (Partido de Janto) foi justamente porque a direita propôs emendas que o desfigurariam inserindo itens que atentariam contra direitos fundamentais e que acabariam por prejudicar os trabalhadores. Então temos PTB e o próprio governo unidos na rejeição de uma proposta deste mesmo governo em nome de valores democráticos. Para muitos do que assistem este documentário esta atitude é uma das confirmações do apreço que Jango tinha por estes valores. A democracia pesou mais que a segurança.
 No caso do "Comício da Central" o depoimento é de Raul Riff, ex-secretário de imprensa de Jango, e sempre como reforço à imagem positiva de João Goulart. Chega até a afirmar que Jango foi aconselhado a não realizar este comício mas resolveu assumi-lo. Fica evidenciada, portanto, mais uma virtude de Jango: a coragem.
 Por isso, concordamos com Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos quando afirmam em seu livro "Cinema e História do Brasil" à pág. 45: "o filme Jango está informado pela visão oferecida pelos agrupamentos de esquerda que mais apoio deram ao governo: o PTB e o PCB. O filme faz com que a visão destes grupos apareça como a mais válida sobre o tema (as opiniões contrárias ao governo oferecidas pelos militares funcionam como reforço da visão do PTB, do PCB e do filme)."
 E concluímos esta resenha afirmando que o documentário Jango mostra mas "não faz pensar". Diferentemente de outros documentários como o de Eduardo Coutinho que possibilita espaço para os diversos sujeitos com suas visões diferenciadas, deixando explícito que o real é sempre construído, o real é sempre fruto de interpretações dos sujeitos que tentam desvendá-lo. Enfim, que o real é sempre construído dentro de limites e possibilidades, é sempre muito humano, carrega as suas marcas
  
.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 1.Ramos, Freire Alcides e Bernardet, Jean Claude. Cinema e História do Brasil. São Paulo, Editora Contexto e Editora da Universidade de São Paulo,1988.
 2. Vários autores. O Olhar. (texto de Ismail Xavier: "Cinema: Revelação e Engano"). Cia de Letras, São Paulo, 1988.
 3. Apostila do Curso "Cinema e Documentários": "História, crítica e processo de Produção". Mnemocine - Ensino e Pesquisa, 1999.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Artigo de Anita Prestes sobre o filme/documentário "O Velho"


Uma estratégia da direita: Acabar com os "mitos" da esquerda.
(A propósito do filme documentário “O Velho - A História de Luiz Carlos Prestes”)*
Anita Leocadia Prestes
Doutora em Economia e História Social, professora de História do Brasil na UFRJ e autora dos livros A Coluna Prestes (Ed. Brasiliense,1991, 3ª ed.) e Os Militares e a Reação Republicana (As Origens do Tenentismo) (Ed. Vozes, 1994).






Se concordamos com Norberto Bobbio, quando ele afirma que “esquerda” e “direita” constituem a “grande divisão”, hoje “mais viva do  que nunca” na “história da luta política na Europa do último século” , temos um ponto de partida para tentar explicar as novas estratégias da direita atual. Visando defender de maneira mais eficaz os interesses dos setores sociais que representa - principalmente o grande capital internacionalizado -, a direita dos anos noventa apela para novos expedientes, mais adequados aos tempos de hoje, ou seja, ao período histórico caracterizado por Eric Hobsbawm como o fim de uma era e o início de outra. Vivemos um momento histórico, em que, dada a derrota sofrida pelo “socialismo real”, em particular no Leste europeu, os interesses do grande capital internacionalizado passaram a dominar o mundo de maneira indivisível, sem ter quem lhe possa oferecer uma resistência eficaz. Como é assinalado por James Petras, “o Ocidente está fazendo anexações e ocupações político-militares de longo prazo de uma forma nunca vista desde a era colonial”. Haja vista a Guerra do Golfo, em 1991, levada adiante contra o Iraque pelas grandes potências imperialistas. impor, em grande medida, sua hegemonia ideológica, através de meios de comunicação extremamente poderosos, eficientes e sofisticados, como a humanidade jamais, antes, conhecera. Seus “intelectuais orgânicos” - para usar o conceito proposto e teorizado por Antônio Gramsci - trabalham de maneira intensa, consciente ou inconscientemente, com o objetivo, em geral habilmente encoberto, de justificar os interesses do grande capital internacionalizado, ou seja das corporações multinacionais. A tão propalada “globalização”, sob a égide desse grande capital, é apresentada como o ápice do desenvolvimento humano, como a única alternativa possível para o século XXI.
Nesse mundo “pós-moderno”, para que a ordem dita néo-liberal possa ser mantida, evitando as sempre temidas convulsões sociais, é necessário, entre as muitas medidas a serem adotadas, visando a sua permanência e reprodução, sepultar os chamados “mitos” da esquerda. Trata-se, na verdade, de apagar, na memória de grande parte das pessoas, não só a crença num futuro de justiça social, no qual venham a imperar valores como a igualdade e a liberdade para milhões e milhões de homens e mulheres em nosso planeta, como também a admiração e o respeito cultivados por muitas dessas pessoas em relação àqueles que deram suas vidas ou contribuíram de maneira decisiva para que tais ideais se tornassem realidade.
Torna-se imperativo, pois, acabar com os heróis e com a exaltação de seus feitos e de suas vidas. O heroismo dos revolucionários, dos comunistas e dos antifascistas é batizado de “mito” para melhor poder
ser destruído. O exemplo daqueles que lutaram por um mundo melhor e mais justo é desqualificado com uma simples penada: afirma-se que seus propósitos foram derrotados e, portanto, sua luta teria sido inglória.[1] Às gerações atuais restaria conformar-se com a “globalização” e seus valores marcadamente “consumistas”. Podemos, hoje, observar duas táticas distintas de uma mesma estratégia desenvolvida pela direita, visando combater e destruir os supostos “mitos” da esquerda. Em contraposição aos velhos e
desgastados expedientes dos tempos da “guerra fria”, quando se acusava abertamente os comunistas de comerem criancinhas assadas na brasa e o regime soviético de “socializar” ou “coletivizar” as mulheres e acabar com a instituição da família, no momento atual, adota-se o silêncio a respeito de fatos, acontecimentos e pessoas, que se tornaram incômodos aos interesses dominantes, ou, quando
isso não é possível, recorre-se à descaracterização, ou melhor dito, à deturpação da história, visando torná-la aceitável a esses mesmos interesses dos grupos dominantes. O que, entretanto, não quer dizer que, em alguns momentos, os “intelectuais orgânicos” a serviço da direita não possam apelar aos velhos e surrados expedientes, sempre na tentativa desesperadora de sepultar “mitos” inconvenientes.
Neste último sentido, citarei apenas dois exemplos. Em 1991, ano marcado pelo simbolismo da “queda do muro de Berlim”, o conhecido jurista Saulo Ramos veio a público para lançar contra Luiz Carlos Prestes, já falecido e sem possiblidade, portanto, de defender-se, acusação inusitada e surpreendente: Prestes teria, em 1964, denunciado à polícia os nomes de inúmeros de seus companheiros e amigos.[2] Semelhante calúnia - desprovida de qualquer possibilidade de comprovação - não havia sido, até então, levantada sequer pelos mais ferrenhos inimigos de Prestes.
Dois anos depois, em 1993, o jornalista W. Waack afirmava, em seu livro Camaradas, que Prestes teria comprado seu ingresso na Internacional Comunista com o dinheiro recebido de Getúlio Vargas para realizar a Revolução de 30.[3] Outra calúnia, lançada sem nenhuma prova, a respeito de episódio que o próprio Prestes tornara público, durante seu julgamento no Superior Tribunal Militar, em setembro de 1937. Naquela oportunidade, ele demonstrara com documentos[4] que o dinheiro utilizado na preparação dos levantes de novembro de 35 não viera de Moscou, mas lhe fora entregue, em 1930, por Vargas, que o obtivera como resultado da venda à Light, pelo governador mineiro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, de uma usina elétrica de Belo Horizonte. Prestes, ao romper com os “tenentes”, em maio de 30, e ao denunciar o caráter oligárquico e antipopular do movimento liderado por Vargas, decidira destinar
esses recursos à realização do que ele considerava a verdadeira revolução brasileira - a “revolução agrária e
antiimperialista”, defendida pelo Partido Comunista. A afirmação difamante de W. Waack, além de mentirosa, constitui uma deturpação grosseira das práticas vigentes na Internacional Comunista, pois é amplamente sabido que a escolha dos dirigentes dessa organização era feita de acordo com critérios de mérito revolucionário e jamais a partir de uma suposta “compra” de ingresso.
Tais exemplos de ataques diretos aos “mitos” da esquerda tendem, contudo, a tornarem-se menos frequentes. A tática do silêncio revelase aparentemente mais eficaz. Na Alemanha atual, pós queda do muro de Berlim, atinge proporções preocupantes a tendência, insistentemente promovida pela direita, de apagar a memória dos comunistas e antifascistas, a memória de todos aqueles que lutaram contra o fascismo, pela democracia e pelo socialismo. Semelhante processo é particularmente visível no território da antiga República Democrática Alemã, onde os heróis da luta revolucionária pelo socialismo e da resistência antinazista eram lembrados e cultuados. Hoje procura-se retirar seus nomes de ruas, praças, escolas e demais lugares públicos e instituições; fecham-se museus - antigos campos de concentração -, para dar lugar aos modernos templos da sociedade de consumo - os supermercados e shopping centers. Na Alemanha, certamente, há forças sociais e políticas que resistem aos propósitos da direita de silenciar não só a respeito do passado
nazista do país como também da luta dos homens e mulheres que resistiram ao fascismo, inclusive dentro dos próprios campos de concentração. A Galeria Olga Benario, em Berlim, com sede no tradicional bairro operário de Neukölln, pode ser citada como exemplo desse tipo de resistência. Seus jovens organizadores desenvolvem há anos um esforço gigantesco para, entre outras atividades sociais, políticas e culturais, resgatar a memória dos revolucionários que dedicaram suas vidas à luta pelo progresso social, pela democracia e pelo socialismo.[5] A tendência dominante nos meios de comunicação ideologicamente controlados pelos donos do poder é, contudo, a de silenciar o passado de luta desses revolucionários e antifascistas. O Chile, hoje, pode ser considerado um outro exemplo da tática do silêncio, adotada pela direita atual. O cineasta chileno Patrício Guzman rodou há alguns meses, em seu país, o documentário A memória obstinada, em que revela o quase total desconhecimento, pelos jovens de hoje, da história recente de sua pátria, ou seja, dos acontecimentos relacionados com o governo democrático da Unidade Popular, dirigido por Salvador Allende, e a sua trágica deposição pelo golpe militar comandado por Augusto Pinochet. Relata Guzman que muitos jovens lhe disseram: “Eu não sabia que as coisas haviam acontecido desta maneira...”, quando lhes foi exibido um documentário anterior do mesmo cineasta - A batalha do Chile (1973- 1979) -, sobre o governo Allende e o golpe militar.[6] Desta forma, a direita no Chile tenta apagar da memória das novas gerações desse país o seu passado recente de grandes lutas e conquistas democráticas e os nomes de heróis, como Salvador Allende, que deram suas vidas por um futuro melhor para o seu povo.
No Brasil, a direita, durante os vinte anos da ditadura militar inaugurada em 1964, adotou a tática do silêncio, particularmente em relação a Luiz Carlos Prestes, embora em períodos anteriores também houvesse recorrido a semelhante expediente. Nas condições atuais do país, de existência de uma relativa liberdade de imprensa - ainda que aliada a uma crescente manipulação da opinião pública -, não sendo mais possível manter silêncio absoluto a respeito de Prestes, procura-se hoje desenvolver formas sutis de, sem recorrer ao ataque direto, descaracterizar a sua figura. Na virada para o século XXI, é necessário apelar para a criatividade dos “intelectuais orgânicos” a serviço da burguesia para encontrar meios mais eficazes de convencimento das pessoas e de construção de um consenso social, capaz de assegurar sua hegemonia política. Em junho de 1991, decorrido apenas um ano do falecimento de Prestes, o Ministério do Exército declarava anistiado o antigo general da Coluna Invicta, promovendo-o ao posto de coronel e concedendo à sua família o direito de receber pensão militar[7], por considerá-lo na reserva, desde que atingira a idade-limite para permanecer na ativa. O aparente reconhecimento dos méritos de Prestes não passava, contudo, de uma hábil tentativa de enquadrá-lo no sistema dominante, de descaracterizar sua figura de revolucionário e comunista, de torná-lo inofensivo perante as novas gerações.
Certamente, não foi casual o fato de essa medida ter sido adotada após o desaparecimento de Prestes: enquanto viveu, ele jamais admitiu voltar às fileiras da corporação da qual, na juventude, se demitira duas vezes e fora posteriormente expulso. Contando com a lamentável colaboração de uma parte da família de Prestes[8], os atuais donos do poder tentaram, desta forma, apropriar-se do legado de uma vida dedicada
inteiramente à revolução social e à contestação da ordem vigente, cuja manutenção é garantida por esse mesmo Exército, que o promoveu a coronel. Temos aí um exemplo das formas sutis empregadas atualmente pela direita para acabar com os supostos “mitos” da esquerda. Outros exemplos poderiam ser citados: todos corroborando a utilização de uma imagem “fabricada” de Prestes, útil aos intentos dos políticos necessitados de conquistar alguma simpatia popular. Sem abandonar a repetição de conhecidas e surradas calúnias contra os comunistas e, em particular, contra Prestes, procura-se difundir uma nova imagem do Cavaleiro da Esperança - a de um homem “puro e ingênuo”,[9] indiscutivelmente honesto (é difícil duvidar de sua honestidade), um bom pai de família, até mesmo um amante das flores e cultivador de roseiras, mas um militar rígido (evita-se lembrar seu reconhecido talento como estrategista, revelado durante a Marcha da Coluna Prestes), incapaz de compreender as nuanças da política. Sua vida política, portanto, não teria passado de uma lamentável sucessão de erros e fracassos - um exemplo desastroso, que não merece ser seguido pelos jovens de hoje, uma vez que se trata de lhes incutir a visão de que só devem ser adotados os “modelos” vitoriosos. Desta forma, é “fabricada” uma imagem “domesticada” ou “pasteurizada”
de Luiz Carlos Prestes - a de uma personalidade que merece muito mais compaixão pelos sofrimentos por que passou do que admiração pelo seu heroismo, pela dedicação sem limites à causa da libertação do seu povo de todo tipo de dominação e exploração, pela firmeza na defesa das convicções revolucionárias assumidas. O herói, o revolucionário, o patriota, o comunista convicto são silenciados, para criar-se uma imagem de um Prestes inofensivo para os dominadores e exploradores de hoje. Este é o tipo de tratamento da imagem de Prestes apresentado no filme documentário “O Velho - A História de Luiz Carlos Prestes”, de autoria de Toni Venturi. Embora o diretor do filme tenha afirmado que não pretendia fazer História, mas somente cinema[10], ao produzir um documentário sobre um personagem histórico como Luiz Carlos Prestes está, na realidade, fazendo História e levando aos espectadores uma determinada versão da história. Como disse o cineasta chileno Patrício Guzman, “o documentarista é um testemunho que toma partido, que se envolve plenamente com o que conta e isto é bom”, acrescentando: “O documentário não é um olho ou uma janela, sim uma representação da realidade. O único documentário objetivo está nas imagens das câmeras de vídeo dos bancos ou de controle do trânsito.”[11] O filme “O Velho” não só está repleto de erros factuais grosseiros, revelando de parte de seus autores um desconhecimento total da história da época e, em particular, da vida de Prestes, como incorre em graves deturpações e distorções em relação ao período histórico supostamente retratado com imparcialidade. Na verdade, o que se percebe no filme é a repetição - embora de forma mais sofisticada - de conhecidas calúnias e inverdades, que a direita sempre lançou contra os comunistas e, em especial, contra Luiz Carlos Prestes. Como seria possível concordar com a opinião do júri do festival intitulado “É tudo verdade”, que premiou “O Velho”, quando afirma que o documentário retratou com fidelidade a história do Cavaleiro da Esperança, se a cada passo do filme nos deparamos com erros escandalosos e imperdoáveis? O célebre Manifesto de Maio de 1930, lançado por Prestes em Buenos Aires, foi parar no mês de julho. A foto de Clotilde Prestes é mostrada como sendo de sua mãe, Leocádia Prestes. O filme mostra cenas da mãe de Prestes recebendo cartas supostamente por ele enviadas durante a Marcha da Coluna, algo totalmente impossível de ter acontecido, pois os rebeldes, ao marcharem pelo interior do Brasil, careciam de qualquer meio de comunicação com as grande cidades e a capital do país.
Da mesma forma, os acontecimentos de 1930, quando Prestes rompeu com os “tenentes” (e não com Vargas, como se diz no filme), estão invertidos em sua ordem cronológica, tornando-os incompreensíveis. O general Miguel Costa é citado como chefe da Revolta tenentista de 1924 em S.Paulo e como presidente da Aliança Nacional Libertadora em 1935, o que, em ambos os casos, não corresponde à realidade. Afirma-se que Prestes não teria sabido, na prisão, do falecimento da mãe, o que também não é verdade. Omitese inteiramente a intensa atividade desenvolvida por Prestes na Europa, durante os anos 70, em solidariedade aos presos e perseguidos políticos no Brasil, criando uma imagem deturpada de sua vida política nesse período. Etc. etc. Trata-se, pois, de uma sucessão de erros, imprecisões e deturpações grosseiras da vida do personagem supostamente retratado, assim como do período histórico em que ele atuou. Mais uma vez, são repetidos os estereótipos criados pela direita e consagrados pela História Oficial sobre a suposta “Intentona Comunista” - na realidade, um movimento de caráter antifascista, antiimperialista e antilatifundista, que jamais pretendeu implantar o comunismo no Brasil, conforme a versão difundida pelos donos do poder. Mais uma vez, repetem-se as calúnias contra os comunistas e, em particular, contra Luiz Carlos Prestes e Olga Benário Prestes, de que seriam meros “agentes de Moscou”, empenhados em deflagrar uma revolução comunista no Brasil, falsificação grosseira da história e total deturpação do efetivo caráter das relações que imperavam entre os partidos comunistas, no seio da Internacional Comunista.
Embora os autores de “O Velho” tenham adotado uma postura de aparente imparcialidade, na medida em que entrevistaram as mais variadas pessoas, seja de direita seja de esquerda, na realidade, o filme revela uma linha político-ideológica definida e apresenta uma mensagem de caráter anticomunista bastante evidente. O principal analista dos acontecimentos de 1935, sintomaticamente, é o jornalista W. Waack, cuja “interpretação” da história não passa deuma grotesca e caricata manipulação dos documentos por ele consultados nos arquivos de Moscou.[12] Da mesma forma, a análise da Coluna Prestes é feita por Eliane
Brum, jornalista que se distinguiu pela maneira irresponsável e tendenciosa como tratou a memória desse importante episódio da nossa história, numa série de reportagens de péssima qualidade, surpreendemente publicadas posteriormente em livro.[13] Segundo E. Brum, a Coluna não teria passado de um grupo de bandidos e estupradores, que percorreram o Brasil cometendo todo tipo de desatinos contra as populações do interior do país - tese que não consegue sustentar-se diante da evidência dos fatos hoje amplamente conhecidos.[14] Em contrapartida, o papel destinado, no filme de T. Venturi, aos entrevistados de esquerda é claramente subalterno. Os historiadores Nelson Werneck Sodré e Marly Vianna ficaram com os seus depoimentos prejudicados pelos cortes frequentes e abruptos, que não permitem ao espectador acompanhar devidamente a exposição de suas idéias e os argumentos por eles apresentados. As entrevistas de intelectuais como Oscar Niemeyer e Ferreira Gullart, em que são externadas opiniões favoráveis a Prestes e aos comunistas, aparecem ligeiramente e sem o destaque dado aos depoimentos de seus inimigos ou adversários. Tanto os autores do documentário quanto os membros do júri que o premiaram revelaram, no mínimo, um total desprezo pela verdade, que o referido festival pretendia retratar. Ao incluir o documentário citado na mostra “É tudo verdade”, e, mais ainda, ao premiá-lo, os organizadores do festival e o seu júri, da mesma forma como aqueles órgãos de divulgação que se mostraram empenhados em sua propaganda, estão, na prática, contribuindo para a desinformação do público e para que os estereótipos fartamente propalados pelo anticomunismo dos tempos da “guerra fria” continuem presentes, influindo na formação das novas gerações que, dessa forma, ficarão ainda mais distantes do conhecimento de nossa história contemporânea.
Com o filme “O Velho”, temos mais um exemplo edificante de como se fabrica e se difunde a HISTÓRIA OFICIAL - aquela que contribui para assegurar a hegemonia dos donos do poder -, num período histórico de avanço da chamada “globalização”, ou seja, de derrota, no cenário internacional, das forças alinhadas com a perspectiva socialista e de progresso e justiça social. Para quem se interessa seja pela história do Brasil seja pela vida de Luiz Carlos Prestes, parece oportuno lembrar estas questões.
Com o filme “O Velho”, assistimos a mais uma tentativa empreendida pelos “intelectuais orgânicos” comprometidos, consciente ou inconscientemente, com a direita de acabar com os “mitos” da esquerda. Neste caso, trata-se, principalmente, de desmoralizar, desgastar, banalizar e tornar inofensiva, para os donos do poder, a figura de Luiz Carlos Prestes. Da mesma forma, procura-se acabar com outro “mito”, que na última década conquistou os corações e as mentes de milhões de pessoas, tanto no Brasil quanto no exterior, através do livro Olga de Fernado Morais[15] - a figura da revolucionária e comunista Olga Benário Prestes, tragicamente assassinada numa câmera de gás de um campo de concentração da Alemanha nazista, para onde fora ilegalmente deportada pelo governo de Getúlio Vargas. A tática da deturpação histórica vem se tornando cada vez mais generalizada, utilizando-se os seus mentores dos atuais meios de comunicação de massa, extremamente poderosos e sofisticados. Dentre eles, o cinema adquire uma importância capital, na medida em que, através da imagem, torna-se possível exercer uma influência
muito maior junto ao grande público. Parece sintomático que, no mesmo momento em que é lançado o documentário “O Velho”, também se dê a estréia do filme de longa metragem “O que é isso companheiro?” de Bruno Barreto. Temos um novo exemplo de manipulação da história recente do país, quando os episódios relacionados com o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, em 1969, são apresentados de maneira a condenar a violência dos jovens sequestradores - que lutavam contra a ditadura militar, embora se possa discordar dos métodos por eles utilizados, - e a sutilmente desculpar a violência da ditadura; chega-se ao extremo de procurar “amenizar” o horror da tortura institucionalizada durante os “anos de chumbo”. Desta forma, adota-se uma postura conciliatória com a ditadura militar que dominou o país por mais de vinte anos, na tentativa de afastar os jovens de hoje de qualquer simpatia por atitudes de rebeldia ou contestação à ordem vigente. Procura-se, assim, acabar com o “mito” das esquerdas no Brasil.
A manipulação da memória histórica pelos donos do poder não é nova. Já no caso do tenentismo, tivemos um exemplo de como, a partir da vitória do movimento de 30, os “intelectuais orgânicos” ligados ao poder, procuraram utilizar-se do prestígio dos jovens “tenentes” da década de vinte para justificar as políticas
implementadas pelos setores dominantes.[16] A novidade atual reside na intenção declarada de alcançar, através de expedientes cada vez mais elaborados e sutis - quando a tecnologia avançada dos dias de hoje é colocada a serviço dos desígnios das forças de direita -, a “desmitificação” seja dos acontecimentos seja dos personagens que ainda provocam admiração e respeito junto a setores significativos da sociedade. Este é o caso, no Brasil, de Luiz Carlos Prestes - personalidade respeitada e admirada até mesmo por seus adversários políticos, personagem símbolo da luta revolucionária no país, da luta pelo socialismo no Brasil. Este é o caso, também, de Olga Benario Prestes - personagem heróica das esquerdas tanto no Brasil quanto no cenário mundial, imortalizada nas páginas comoventes do livro Olga. Este é o caso dos jovens revolucionários que lutaram e tombaram tragicamente na luta contra a ditadura implantada no país em 1964. Este será o caso de muitos outros acontecimentos e personagens de esquerda, enquanto essa estratégia “desmitificadora” da direita não for neutralizada e derrotada.
Artigo publicado na revista Cultura Vozes, n° 4, volume 91, Petrópolis (RJ), julho-agosto de 1997, p.51- 62.
* Os conceitos de “direita” e “esquerda” são empregados conforme BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. S.P., EDUSP, 1995.
[1] Cf., por exemplo, WAACK, William. Camaradas: nos arquivos de Moscou: a história secreta da revolução brasileira de 1935. S.P., Comp. das Letras, 1993, p. 11.
[2] Cf. RAMOS, Saulo. “Entrevista”, EXAME VIP, Nº 9, 2/10/91, P. 24-31.
[3] Cf. WAACK, W. Op. cit., capítulo 2
[4] Documentos que se encontram no processo movido contra L.C. Prestes pelo Tribunal de Segurança Nacional, hoje depositados no Arquivo do STM, sediado em Brasília.
[5] Sobre a Galeria Olga Benario, cf. EHRENFORT, Petra, “A Galeria Olga Benário em Berlim ‘Queremos fazer um trabalho do qual Olga se orgulhasse!’”, in STRAUSS, Dieter (org.) Não Olhe nos Olhos do Inimigo: Olga Benário e Anne Frank. R.J., Paz e Terra, 1995, p. ll5- 118.
[6] Cf. SANTOS, Elza Fernandez, “Chile revê o seu passado”, Jornal do Brasil, R.J., “Caderno B”, 6/5/97, p.2.
[7] A autora deste artigo, filha de L.C. Prestes, recusou a pensão de coronel do Exército do seu pai, assinando termo de renúncia, encaminhado oficialmente ao Ministério do Exército, datado de
10/08/92.
[8] A víuva de Prestes, contrariando a vontade por ele expressa em vida, solicitou ao Ministério do Exército a reintegração de Prestes no Exército e a pensão militar, que foi concedida às suas filhas mulheres.
[9] Cf., por exemplo, CONY, Carlos Heitor, “Prestes teve o ímpeto dos puros e ingênuos”, Folha de S. Paulo, “Folha Ilustrada”, S.P., 11/04/97, p. 19.
[10] Cf. Folha de S.Paulo, “Folha ilustrada”, 23/04/97.
[11] Cf. SANTOS, Elza Fernandes. Op. cit.
[12] Cf. WAACK, W. Op. cit.
[13] Cf. BRUM, Eliane. Coluna Prestes: o Avesso da Lenda. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1994.
[14] Cf. PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 3ª ed. S.P., Brasiliense, 1991.
[15] MORAIS, Fernando. Olga. S.P., Ed. Alga-Omega, 1985.
[16] Cf. PRESTES, Anita Leocadia. “70 anos da Coluna Prestes: a história oficial ontem e hoje”, Cultura Vozes, nº 5, setembro/ outubro,1994, p. 67-76.