segunda-feira, 16 de julho de 2012

Cine História: Guerra sem cortes.


O ponto alto da película é um impressionante plano-sequência de cerca de quatro minutos, que mostra o protagonista, Robbie, e dois companheiros de armas na praia francesa de Dunquerque, em 1940, durante a retirada das tropas inglesas que foram para o continente lutar contra o avanço nazista sobre Paris, no começo da Segunda Guerra Mundial. A sequência se refere a um momento daquela que foi chamada de Operação Dínamo, e que consistiu na evacuação do porto de Dunquerque, e das praias ao redor da cidade, de milhares de soldados da Força Expedicionária britânica e de países aliados (entre final de maio e início de junho, sob intenso bombardeio inimigo, foram evacuados mais de 300 mil homens). A ofensiva alemã não dava mais chances de luta às tropas aliadas, que, encurraladas em poucos quilômetros de litoral, só podiam ser resgatadas pelo mar.

A obra de arte tem muitas vezes a capacidade de transportar as pessoas numa autêntica viagem que parece suspender o tempo e cancelar o espaço ao seu redor. Se isto é verdade para a leitura de uma obra literária ou a audição de um concerto de música, confirma-se com mais vigor ainda quando assistimos a um filme. A câmera substitui o nosso olhar e nos faz encontrar pessoas, percorrer lugares, viver situações. Nós vemos e vivemos o que a câmera vê e filma. A edição recorta e cola sequências, produzindo o efeito final da sucessão das cenas. O espectador parece viver dentro da tela.
O efeito, contudo, é impressionante quando o cinema se serve de uma técnica que assemelha ainda mais a arte à vida: o plano-sequência, isto é, a filmagem direta e sem cortes de uma sequência de cenas. Uma das mais recentes produções cinematográficas que recorrem a esta técnica é o espetacular"Arca Russa", do diretor Alexandr Sokurov, uma verdadeira viagem pelos salões do museu Hermitage de São Petersburgo, que corresponde também a uma viagem pela história russa, através de três séculos: tudo em um único plano-sequência, de cerca de 90 minutos.   
Entre muitos filmes que lançam mão do plano-sequência, há dois que o fazem para retratar o drama da guerra e o desastre que ela provoca, mesmo quando a batalha foi vitoriosa. O primeiro é um filme de 2007, "Desejo e Reparação" ("Atonement", na versão original), dirigido pelo britânico Joe Wright. Vencedor do Globo de Ouro de melhor filme dramático em 2008, o longa é uma adaptação do livro homônimo do também britânico Ian Mc Ewan, que discute sentimentos de amor, culpa e arrependimento, tendo como pano de fundo a sociedade inglesa da primeira metade do século XX.
O filme, no plano-sequência em questão, mostra Robbie em sua peregrinação pela praia, em busca de uma saída, e assim somos apresentados ao drama de milhares de soldados acuados naquele pequeno espaço vital, como ele. A câmera acompanha o protagonista e seus companheiros esbarrando com esta situação, aparentemente sem salvação. Há quem chore, quem brigue, quem beba e quem tente eliminar todas as potenciais presas dos nazistas, como cavalos e veículos. Um grupo de soldados, num coreto, entoa um hino religioso, talvez numa tentativa de transmitir força e esperança ao resto das tropas. Ao redor, somente máquinas de guerra inservíveis, areia, fumaça e até uma espectral roda gigante, paradoxal símbolo de uma diversão agora impossível. O resultado é um sugestivo exercício cinematográfico, aliado a mais uma exposição do que é o homem diante de uma condição extremada como a guerra.
Ainda restando no âmbito da cinematografia britânica, outro plano-sequência memorável sobre um evento bélico se encontra quase no final do filme "Henrique V", dirigido por Kenneth Branagh. Realizado em 1989, é uma adaptação para o cinema da homônima peça de Shakespeare. O longa reconstrói a jornada do rei inglês, interpretado pelo próprio Branagh, em sua luta contra os franceses, durante a Guerra dos Cem Anos. A sequência se refere aos momentos sucessivos à batalha de Azincourt, no norte da França, travada em 25 de outubro de 1415, dia de São Crispim, entre o exército inglês (15 mil homens) e as muito mais numerosas tropas francesas (cerca de 50 mil). Shakespeare (Branagh também) põe na boca de Henrique V um breve discurso na véspera da batalha: "Aquele que sobreviver esse dia e chegar à velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: "Amanhã é São Crispim". E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: "Recebi estas feridas no dia de São Crispim." O confronto se deu num terreno transformado em atoleiro pelas fortes chuvas, mas onde a habilidade dos arqueiros britânicos se sobressaiu, permitindo a derrota do exército inimigo, que sofreu perdas enormes.
A vitória inglesa é celebrada através de um canto religioso, o “Non nobis, Domine” ("Não a nós, Senhor"), que atribui somente a Deus a glória pelos sucessos humanos, nesta circunstância o triunfo em batalha. Entoada por um único soldado no começo da sequência, a música é cantada por cada vez mais vozes, transformando-se num crescendo ao longo do plano-sequência, durante o qual o espectador acompanha Henrique V. O rei, embora esgotado pela luta, ainda encontra forças para carregar nos ombros um jovem soldado morto e atravessar todo o campo de batalha, em meio a lama, sangue, feridos e cadáveres, lanças e flechas, até conseguir depor o corpo perto da bandeira inglesa. Como um triste cortejo, soldados exaustos acompanham os passos do rei, numa mistura de sentimentos, onde ao orgulho pela vitória se sobrepõe a consciência de que se tratou de um verdadeiro milagre divino e que mesmo assim custou demasiadas vidas humanas. Aqui o espectador também é transformado em mais um soldado do exército inglês, participando dos momentos finais daquela histórica batalha.